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A

 



Seção IX

 Narrativa Retomada:

DISCIPULADO E CONTROVÉRSIA Mateus 19.1—23.39

A. Discipulado, 19.1—20.34

1. A Partida da Galiléia (19.1-2) Pela quarta vez (cf. 7.28; 11.1,13.53) encontramos a expressão conclusiva: E aconteceu que, concluindo Jesus esses discursos (1). Essa frase marca o final do quarto discurso. O “Grande Ministério da Galiléia”, que havia durado talvez um ano e meio, agora

chegava ao fim. Pela última vez Jesus disse adeus à sua terra e começou a jornada fatal a Jerusalém. A expressão saiu da Galiléia traz em si o sinal da decisão. Ela marcou o fim de uma época. Lucas realça o significado dessa afirmação nesse ponto da história: “E aconteceu que, completando-se os dias para a sua assunção, manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém” (Lc 9.51). Cristo dirigiu-se aos confins (“limites”) da Judéia, além do Jordão (1). Essa é

uma estranha expressão geográfica. Falando apropriadamente, a Judéia estava localizada entre o vale do Jordão e o mar Mediterrâneo. Aterra além do Jordão era conhecida, naquela época, como Peréia, e era governada pelo tetrarca da Galiléia, Herodes Antipas. Mas, como observa Plummer: “Judéia aqui parece ser usada no sentido mais amplo da Palestina, a terra dos judeus”.1 Nessa área da Peréia, novamente seguiram-no muitas gentes e curou-as ali

(2). Em uma passagem semelhante, Marcos 10.1 diz que: “Ele tornou a ensiná-los”. A narrativa indica que Ele fez as duas coisas. Em sua última viagem a Jerusalém, o Mestre e seus discípulos atravessaram o Jordão

ao sul do Lago da Galiléia (veja o mapa) e se dirigiram para o lado oriental do rio através da Peréia. Essa era a rota usada geralmente pelos peregrinos da Galiléia quando viajavam para as festas anuais em Jerusalém. O caminho mais curto através de Samaria não era muito usado, porque esse território era considerado “impuro”. Em relação à Peréia, Andrews escreve: “A população não era formada exclusivamente por judeus, mas era mista: não era totalmente pagã como em Decápolis e também não seria tão facilmente incitada contra o Senhor como os habitantes da Judéia ou mesmo da Galiléia”.2 Ele também chama atenção para a expressão rabínica que diz que “a Judéia era o trigo, a Galiléia a palha, e a Peréia era o joio”.3

2. O Casamento (19.3-12) a) O Divórcio (19.3-9). A questão do divórcio teve um papel importante no primeiro

século, da mesma forma que hoje. Jesus discutiu essa questão no Sermão do Monte (5.3132). Agora ela reapareceu. A discussão sobre esse assunto tinha um significado e um perigo especiais na época do ministério de Jesus, porque Herodes Antipas havia recentemente se divorciado de sua esposa. Dessa vez, a discussão foi precipitada pelos fariseus (3), os rígidos mantenedores e

mestres da Lei. Eles se aproximaram de Jesus tentando-o, ou “testando-o” (veja as notas sobre 4.1; 16.1).4 A pergunta que fizeram foi: E lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? A última frase - por qualquer motivo - é particularmente significativa. Ela

não é encontrada na passagem paralela em Marcos 10.2-12, pois os leitores gentios não teriam conhecimento, como os leitores de Mateus, da conotação judaica. Ela realça a controvérsia existente no primeiro século a.C. entre as escolas de Hillel e Shammai. O conflito se originou a partir da interpretação de Deuteronômio 24.1 - “Quando um

homem tomar uma mulher e se casar com ela, então, será que, se não achar graça em seus olhos, por nela achar coisa feia, ele lhe fará escrito de repúdio, e lho dará na sua mão, e a despedirá da sua casa”. Shammai afirmava que “coisa feia” significa fornicação: “Um homem não se divorciaria de sua mulher, a não ser que tivesse encontrado nela um motivo de vergonha”.5 Seu colega Hillel (cerca de 60 a.C. - 20 d.C.), que era muito mais liberal, enfatizava a primeira frase: “Ela não encontrou favor em seus olhos”. Ele permitiria a um homem divorciar-se da esposa se ela fizesse alguma coisa que o desagradasse, até mesmo se queimasse o alimento ao cozinhá-lo. Ao responder (4) a pergunta dos fariseus, Jesus, como de costume, mencionou a

Palavra de Deus - uma sugestão para nós quando estivermos tratando de controvérsias teológicas. O Senhor relembrou que, no início, Deus fez os seres humanos como macho e fêmea (Gn 1.27). Então (5) Ele citou Gênesis 2.24, onde se encontram as diretrizes divinas para o casamento humano. Essa passagem é citada duas vezes por Paulo (1 Co 6.16; Ef 5.31). Jesus insistiu na última frase ao repeti-la (6). A união do casamento é precisamente indissolúvel porque transforma duas pessoas em uma só - não separe o homem. Stier diz: “Uma só carne, isto é, uma pessoa, formando ambos, juntos, um homem dentro dos limites de sua vida na carne, para esse mundo”. Como ainda não estavam satisfeitos, os fariseus perguntaram: “Então, por que mandou Moisés dar-lhe carta de divórcio e repudiá-la?” (7). Jesus respondeu: por causa da dureza do vosso coração... mas, ao princípio, não foi assim (8). O plano original de Deus era “conserve-se somente com ela enquanto ambos viverem”. Ao dizer que Moisés permitiu dar-lhes uma carta de divórcio, Cristo corrigiu a palavra mandou (7) usada pelos fariseus. Moisés apenas “permitiu” o divórcio. A exigência de que o marido fornecesse uma carta de divórcio tinha o objetivo de funcionar como um controle e não como um encorajamento. Atualmente, um muçulmano só precisa dizer três vezes à sua esposa: “Eu me divorcio de você”, e o divórcio será legalmente reconhecido. Moisés teria tornado esse assunto mais difícil, ao exigir que o homem usasse os serviços de um escriba para preparar um documento escrito. Cristo se colocou claramente a favor da estrita interpretação de Deuteronômio 24.1.

Ele só permitia uma razão para o divórcio - exceto por causa de prostituição7 (9). Essa cláusula acrescentada ocorre apenas em Mateus (aqui e em 5.32). Embora alguns estudiosos tenham assumido a posição de que essas palavras não teriam sido pronunciadas por Jesus, a opinião deles rejeita a inspiração de Mateus. O adultério representa a negação do voto do casamento e, nesse caso, a posição de Jesus é bastante sólida. Marcos e Lucas enfatizam, ainda mais do que Mateus, a divina aversão ao divórcio. No plano de Deus, o casamento deve ser uma união permanente.

b) O Celibato (19.10-12). Os discípulos se mostraram assustados com a severidade e

o rigor do Mestre. Se o casamento deve ser um compromisso tão grande, não convém casar (10). Ignorando esse ponto de vista egoísta e mesquinho, Jesus defendeu o celibato, ao qual tanto Ele mesmo quanto João Batista seguiam. A expressão Nem todos podem receber esta palavra (11) “provavelmente significa que não é dada a todos a capacidade de enxergar que não é bom se casar; ‘esta palavra’ está se referindo à observação dos discípulos”.8 Em vista do que Cristo tinha acabado de dizer sobre a divina instituição do casamento, torna-se óbvio que o celibato não pertence ao plano habitual de Deus. Um ministro casado, e pai, pode entender mais plenamente e oferecer maior ajuda quanto aos problemas domésticos dos membros de sua congregação, do que um homem solteiro. Seria desnecessário mencionar que o discipulado pode exigir o celibato. Como diz A. B. Bruce: “Jesus eleva todo esse assunto da simples região do gosto pessoal, prazer ou conveniência, até à elevada região do Reino de Deus e de seus requisitos”.9 Jesus prosseguiu (12), mencionando três classes de eunucos (uma palavra grega).

Os primeiros são aqueles que nascem com um defeito físico que os torna eunucos por toda a vida. Outros são aqueles que foram castrados pelos homens. Apalavra “eunuco” vem de eune, “cama”, e echo, “ter”. Ela foi usada primeiramente para o “guarda do quarto de um harém oriental... uma função zelosa que só poderia ser confiada àqueles que fossem incapazes de abusar dessa confiança; portanto alguém que tivesse sido emasculado”.10 O terceiro grupo é composto por aqueles que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céus. Essa é uma atitude ética e não física. Paulo reconheceu a sabedoria dessa decisão para alguns (ICo 7.32-35). Mas também preveniu contra a promoção dos falsos mestres que “proibiam o casamento” (1 Tm 4.3). Não existe nenhum suporte escriturístico para o celibato obrigatório. Somente aqueles

que forem capazes de recebê-lo, aqueles a quem foi concedido, (11) é que deverão segui-lo. A palavra grega para concedido significa “dar espaço”. Ela foi usada aqui, “metaforicamente, como dando espaço no coração ou na mente”.11

3. A Bênção aos Pequeninos (19.13-15) Esse breve e maravilhoso episódio foi descrito nos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mc

10.13-16; Lc 18.15-17). Pais amorosos trouxeram seus filhos a Cristo, para que lhes impusesse as mãos e orasse (13). Carr diz: “Parece que era costume levar as crianças judias à sinagoga para serem abençoadas pelo Rabino”.12 O casamento é sagrado, assim como as crianças. Os discípulos se ressentiam dessa imposição sobre o tempo e a resistência do seu

Mestre. Eles censuravam aqueles que traziam suas crianças. Achavam que elas não tinham importância, assim como alguns obreiros da igreja atualmente. Mas a atitude de Jesus era muito diferente. Ele disse: Deixai - “permitam”, “consintam” - os pequeninos e não os estorveis - “não os impeçam” - de vir a mim (14). O Senhor apreciava muito recebê-los de bom grado. Então, Ele acrescentou: porque dos tais é o Reino dos céus. A palavra grega também pode significar “aos quais pertence o Reino dos céus”, ou “o Reino dos céus é composto dos tais”. Na verdade, as duas idéias são verdadeiras. “Amor, simplicidade de fé, inocência e, acima de tudo, humildade, são as características ideais das criancinhas, e dos súditos do reino.”13

4. As Riquezas (19.16-26) a) O Jovem Rico (19.16-22). Essa história foi contada nos três Evangelhos Sinóticos

(cf. Mc 10.17-31; Lc 18.18-30). Mateus diz que o homem era “jovem” (20) e que “possuía muitas propriedades” (22). Lucas informa que ele era um “príncipe” e “muito rico” (Lc 18.18, 23). O homem disse a Jesus: Bom Mestre14 (“Professor”), que bem farei, para conseguir a vida eterna? (16). Essa era uma questão relevante que mostrava a necessidade de um relacionamento mais profundo com Deus. Vida eterna significa “uma amizade plena e permanente” com Deus.15 Para os judeus ela geralmente queria dizer “vida na era por vir”.16 Essa frase, muito comum em João, é encontrada pela primeira vez aqui nos Sinóticos. Em resposta, o Mestre perguntou: Por que me chamas bom? (17). O melhor texto

grego diz: “Por que me perguntas a respeito do que é bom?” O termo bom não se refere a algo, mas a alguém; a Deus. Então Jesus levou o Jiomem a considerar as Escrituras, e disse-lhe: guarda os mandamentos. Mas o interlocutor era persistente, e perguntou: Quais? (18). A palavra grega poia

quer dizer, literalmente: “De que espécie?” Embora aqui essa palavra possa ser equivalente a tis, “Quais?, Jesus deixou de lado os quatro primeiros dos Dez Mandamentos, e citou o sexto, sétimo, oitavo, nono e o quinto. Ele omitiu o décimo, e em seu lugar Marcos registrou, “Não defraudarás alguém” (Mc 10.19). Só Mateus acrescentou: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (19; veja Lv 19.18), que é um resumo dos seis últimos mandamentos que descrevem as obrigações em relação ao homem. Jesus não mencionou os primeiros quatro mandamentos que indicam as obrigações em relação a Deus, talvez porque tivesse a intenção de, nesse momento, testar o jovem rico. O jovem havia quebrado o primeiro mandamento, pelo fato de “mamom” ter se tornado o seu principal deus. A afirmação desse príncipe - Tudo isso tenho guardado (20) - é encontrada

nos três Sinóticos. Somente Mateus acrescenta: que me falta ainda? Parece claro que ele não estava satisfeito com a sua religião, e sentia que faltava alguma coisa em seu interior. Jesus falou com aquele homem em seus próprios termos: Se queres ser perfeito

(21). A palavra teleiosjá havia ocorrido duas vezes em 5.48 (e em nenhuma outra passagem nos Evangelhos, mas ocorre dezesseis vezes nas Epístolas). Ela vem de telos, ou “fim”. Thayer observa que seu significado mais correto é: “Levou ao seu final, terminou; nada mais faltava para a conclusão, estava perfeito”.17 Para as duas passagens em Mateus, ele sugere: “Aquele que alcançou a estatura adequada de virtude e integridade”.18 AbbottSmith pensa que aqui ela expressa “a simples idéia da completa bondade”.19 Arndt e Gingrich sugerem para essa passagem: “Perfeito, totalmente desenvolvido em um sentido moral”.20 A tradução “completo” é a que responde melhor a essa questão: “Que me falta ainda?” No caso desse jovem, a perfeição exigia que ele vendesse todas as suas propriedades

e distribuísse todos os proventos entre os pobres. Isso porque o dinheiro, e não Deus, era o principal objetivo da sua vida. O discipulado exige renúncia a tudo em nome de Cristo. Para a maioria das pessoas, isso não quer dizer renunciar a todos os bens materiais. Mas, a fim de serem plenamente santificadas (1 Ts 5.23), todas as pessoas devem renunciar àquilo que lhes é mais querido para que Deus possa realmente assumir o primeiro lugar em suas vidas. Bonhoeffer escreve: “Existe alguma parte de sua vida que você está se recusando a renunciar? Talvez alguma paixão pecaminosa, alguma animosidade, alguma esperança, talvez a sua ambição ou a sua intuição? Se assim for, não deve se surpreender por não ter recebido o Espírito Santo, por sentir dificuldade de orar, ou por seu pedido para ter fé permanecer sem resposta”.21 Recusando-se a renunciar, o jovem retirou-se triste (22, literalmente, “entristecido”). Ele estava dominado por um conflito de interesses. Desejava obedecer a Jesus, mas também queria gozar a sua fortuna. Esse último desejo era mais forte, e venceu. O discipulado exige perfeita obediência. Algumas pessoas pensam que “Crer no

Senhor Jesus Cristo” (At 16.31) significa simplesmente um consentimento mental. Mas, como insiste D. L. Moody, também é preciso um consentimento moral. Isso quer dizer um compromisso com Cristo. Bonhoeffer expressou essa idéia com exatidão quando escreveu: “O homem que desobedece não pode crer, pois somente aquele que obedece pode crer”.22 Na obra Biblical Illustrator, D. Macmillan resume a história do jovem príncipe rico

da seguinte maneira: 1) Um encontro cheio de esperança, 16; 2) Uma importante conversa, 17-21; 3) Uma triste partida, 22; 4) Importantes lições, 23-26.

b) O Perigo das Riquezas (19.23-26). Depois que o jovem príncipe rico havia partido,

o Mestre se voltou aos seus discípulos e declarou solenemente: Em verdade vos digo que é difícil entrar um rico no Reino dos céus (23). O termo difícil quer dizer “com dificuldade”, e essa dificuldade reside precisamente no fato de a maioria dos homens ricos fazer da sua riqueza o seu deus. Mais uma vez Jesus fez uso de uma hipérbole - uma afirmação exagerada para

alcançar o efeito desejado. A tentativa de mudar a palavra camelo (24) para corda como faz George Lamsa, baseado em um suposto original em aramaico - ou a tentativa de aumentar o fundo da agulha para uma pequena porta no muro de Jerusalém, são equivocadas. Devemos aceitar essa passagem exatamente como está escrita. O Talmude judaico usa a figura de um elefante passando pelo buraco de uma agulha para expressar a idéia de uma coisa impossível. Jesus fez a mesma coisa aqui. Os discípulos admiraram-se muito e perguntaram, Quem poderá, pois, salvarse? (25). Essa pergunta reflete a crença judaica comum de que a prosperidade material era uma evidência das bênçãos de Deus. Embora essa crença esteja muitas vezes refletida no Antigo Testamento, o Livro de Jó refuta essa idéia. Como uma forma de responder, Jesus primeiramente olhou para eles (26) - literalmente, “olhou em direção a eles”. Carr observa: “Esses olhares penetrantes de Cristo produziam, sem dúvida, um efeito em suas palavras que é impossível recordar, mas que nunca se apagaria da memória daqueles que entenderam o seu significado”.23 Em seguida, o Mestre declarou que embora isso (a salvação dos ricos) fosse impossível aos homens, não há limite para aquilo que Deus pode fazer quando os homens permitem que Ele faça a Sua vontade.

5. As Recompensas do Discipulado (19.27—20.16) Existem dois episódios nesta seção, e eles estão intimamente ligados pelo fato de

ambos terminarem essencialmente com as mesmas palavras (19.30; 20.16). a) A Preocupação de Pedro (19.27-30). A recusa do príncipe rico de desistir de sua

fortuna levou Pedro a dizer: Eis que nós deixamos tudo e te seguimos (27). Mas seu testemunho estava viciado por um pedido egoísta: que receberemos? O apóstolo ainda estava sendo irremediavelmente materialista e egoísta em sua visão da vida. Jesus lhes garantiu (28) - Pedro era o porta-voz de todo o grupo de discípulos - que

todos aqueles que o seguissem seriam abundantemente recompensados na regeneração. A palavra palingenesia significa “novo nascimento, renovação, restauração, regeneração”.24 Ela ocorre apenas aqui e em Tito 3.5 - “regeneração, renovação”, referindo-se à experiência espiritual individual. Mas aqui ela quer dizer “o novo mundo” como foi traduzida na Versão Siríaca e encontrada no apócrifo Apocalipse de Baruque (44.12).25 Ela foi posteriormente identificada como o momento em que o Filho do Homem se sentará no trono de sua glória. Essa combinação está admiravelmente refletida em Apocalipse 21.5 - “E o que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas”. Bengel comenta: “Haverá uma nova criação, sobre a qual um segundo Adão presidirá, quando tanto o microcosmo da natureza humana, através da ressurreição, quanto também o macrocosmo do universo, renascerão”.26 A recompensa dos discípulos foi assim expressa: também vos assentareis sobre

doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel. Como poderíamos esperar, essa declaração apocalíptica, vestida em uma linguagem judaica, despertou várias interpretações. O melhor que podemos fazer é interpretar Escritura por Escritura. Paulo diz: “Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo?” (1 Co 6.2). Isso parece refletir Daniel 7.22 - “Até que veio o ancião de dias, e foi dado o juízo aos santos do Altíssimo”. Porém, muitos relacionam essa linguagem a “reinar” e não a “julgar” em um sentido

jurídico. Williams diz: “O verbo ‘julgar’ às vezes significa ‘governar ou dirigir’ e talvez possa ter sido usado aqui para dizer que os santos serão, no novo reino Messiânico, os vice-regentes de Cristo e exercerão a autoridade que a Ele pertence”.27 Em relação às doze tribos de Israel, Williams escreve: “E muito provável que o

termo ‘Israel’ seja uma referência ao Israel espiritual, ou a todo o corpo da igreja, e o número doze... represente o número completo daqueles que estão sendo julgados”.28 Jesus também prometeu que todos aqueles que deixarem os seus familiares e as

suas propriedades para segui-lo, receberão cem vezes tanto (29). Marcos acrescenta “já neste tempo”. Mas a suprema recompensa é a vida eterna. A melhor tradução é “vida eterna” pois representa alguma coisa que é tanto qualitativa como quantitativa. Não é apenas a vida que dura para sempre (eternamente), mas a vida da eternidade (o próprio Deus) na alma do homem. O versículo 30 representa uma censura à autocomplacência de Pedro. Embora ele

fosse o primeiro dos discípulos, se mostrasse um espírito errado passaria a ser o último. E os cristãos que, aos olhos do mundo, são os últimos, passarão a ser os primeiros.

b) Parábola dos Trabalhadores na Vinha (20.1-16). Esta é mais uma das parábolas

de Mateus sobre o Reino, que começa com a fórmula: O Reino dos céus é semelhante... (1; cf. c.l3) e que só é encontrada nesse Evangelho. Pai de Família significa, literalmente, “mestre da casa” (oikos, “casa”, que se compõe com despostes, “mestre”). Esse homem saiu de madrugada, talvez ao nascer do sol, para contratar trabalhadores para a sua vinha. “Em todas as grandes cidades as pessoas que queriam trabalhar estavam reunidas \proi] por volta das 6 horas da manhã.”29 Quando as uvas amadurecem, precisam ser colhidas rapidamente, caso contrário a colheita estará perdida. / Ele encontrou alguns homens e combinou com eles que iria pagar um dinheiro [ou

um denário] por dia (2). A palavra grega indica o denário romano, uma moeda de prata que valia cerca de vinte centavos de dólar americano (alguns a avaliam em quinze ou dezessete centavos). Mas essa quantia representava muito mais em poder de compra do que hoje, e era um salário habitual e justo para um dia de trabalho. Novamente, ele voltou perto da hora terceira (9 horas da manhã) e encontrou

homens desocupados na praça (3) - na Agora, um lugar central de reunião de cada cidade onde as crianças brincavam (11.16), as pessoas faziam compras (agorazo = “comprar”), os magistrados julgavam (At 16.19), e os filósofos discutiam (At 17.17). O pai de família contratou esses homens simplesmente com a promessa: Dar-vos-ei o que for justo (4). Perto da hora sexta (meio-dia) e da hora nona (3 horas da tarde), ele contratou

outros nos mesmos termos (5). Perto da hora undécima (5 horas da tarde) ele descobriu que ainda havia outros ociosos na Agora (6). Quando perguntou porque não estavam trabalhando, responderam: Porque ninguém nos assalariou (7). Então, ele os mandou à sua vinha com a promessa de que iriam receber o que fosse justo. ... aproximando-se a noite (8) - o costume da época era pagar os trabalhadores ao final de cada dia (cf. Lv 19.13) - o senhor da vinha (o mesmo chefe de família mencionado acima) mandou que seu mordomo (aquele que era “encarregado” dos negócios do seu senhor) chamasse os trabalhadores e lhes desse o pagamento, começando pelos derradeiros até aos primeiros. Então, o “administrador” (Berkeley) colocou os trabalhadores em fila, e começou a fazer o pagamento. Aos que tinham ido perto da hora undécima ele deu um dinheiro a cada um,

isto é, o pagamento de um dia completo de trabalho (9). Quando chegou a vez daqueles que haviam trabalhado o dia todo, eles naturalmente esperavam receber mais. Mas cada um recebeu também apenas um dinheiro (10). Isso causou um descontentamento imediato. Eles murmuravam (11) - o som da palavra grega sugere o zunido das abelhas contra o pai de família. Essa frase foi condensada em uma única palavra grega, oikodespotes, traduzida como “chefe de família” no versículo 1. Aparentemente, a queixa desses homens (12) era muito natural. Mas ela revelava

um espírito egoísta. Os homens que trabalharam apenas uma hora precisavam alimentar suas famílias da mesma forma que aqueles que trabalharam o dia todo. O proprietário lembrou a um dos queixosos que o valor acordado era um dinheiro (ou denário) por um dia de trabalho (13). Dar mais, se assim quisesse, era uma prerrogativa do patrão. Ou é mau o teu olho porque eu sou bom? (15). Os trabalhadores queixosos eram mesquinhos; o chefe de família era generoso e bom. O princípio que essa parábola pretendia mostrar está expresso no versículo 16: Assim, os derradeiros serão primeiros, e os primeiros, derradeiros30 (cf. 19.30). É óbvio que a história foi contada como uma censura ao tipo de espírito que estava refletido na pergunta de Pedro: “Que receberemos?” (19.27). Para ele, a sua pessoa estava em primeiro lugar. Porém, alguns que virão mais tarde se tornarão, comprovadamente, os primeiros. Carr oferece uma boa sugestão sobre as diferentes horas mencionadas. Ele diz: “E

provável que o elemento tempo tenha sido introduzido para ilustrar, sob a forma de uma parábola, os aparentes graus de serviço, significando que nenhum homem pode avaliar, de forma comparativa, os méritos das obras que são feitas para Deus”.31 Como sempre, Trench prestou um excelente serviço ao explicar o propósito dessa

história. Basicamente, “a parábola foi dirigida contra um temperamento e um estado de espírito ofensivos”.32 Seu significado é o seguinte: “ ‘Não vem das obras, para que ninguém se glorie’; essa era a verdade que eles estavam correndo o risco de ignorar, e que o Senhor agora pretendia reforçar através da parábola. Sem as obras, mas com graça para todos, e sem se glorificarem uns sobre os outros, sem exigências de direitos de uma parte perante qualquer outra”.33 J. C. Gray, na obra The Biblical Illustrator desenvolve essa passagem sob o título Os

trabalhadores da vinha. Ele usa um esboço impressionantemente simples: 1) Ociosidade, 1-3; 2) Chamada, 2, 4; 3) Trabalho, 7; 4) Pagamento 8-16.

6. Terceira Previsão da Paixão (20.17-19) Devemos observar que os avisos de Cristo sobre a proximidade de sua morte só

foram feitos aos doze discípulos, em particular (17). Ele não queria nenhuma publicidade sobre o assunto. Mas a importância dessas previsões pode ser constatada pelo fato de que cada uma delas foi registrada nos três Evangelhos Sinóticos (a respeito desse assunto, veja Mc 10.32-34; Lc 18.31-34). Essa terceira previsão é mais detalhada e específica do que as outras duas (cf. 16.21; 17.22-23). Jesus será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas, e condená-lo-ão à morte (o Sinédrio; 18). Então os judeus o entregarão aos gentios para que dele escarneçam, e o açoitem, e crucifiquem (19). Essa é a primeira referência à crucificação, assim como a primeira e clara afirmação de que Ele será executado pelos gentios e não pelos judeus. A Ressurreição foi retratada nas três previsões.

7 .A Ambição Pessoal de Tiago e João (20.20-28) Em Marcos 10.35-45, a outra passagem onde esse episódio está registrado, foi dito

que Tiago e João fizeram o pedido. Aqui é a mãe, com seus filhos (20). Obviamente, o pedido foi feito juntamente, pelos três. Nesse ponto, Mateus abandona a sua prática habitual, e se torna mais específico do que Marcos. Adorando-o significa inclinando-se perante Ele. O pedido era que os dois filhos pudessem se sentar, um à tua direita e outro à tua

esquerda, no teu Reino (21). Depois do segundo anúncio da Paixão, os discípulos haviam perguntado: “Quem é o maior no Reino dos céus?” (18.1). Jesus havia respondido colocando uma criança no meio deles e dizendo: “Aquele que se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no Reino dos céus” (18.4). O presente episódio mostra como era profunda a falta de entendimento deles sobre essa verdade, assim como sobre os ensinos ministrados por Jesus a respeito de sua Paixão, que se aproximava. Eles haviam deixado de entender totalmente o espírito do seu Mestre. Ainda estavam pensando no estabelecimento de um reino terreno. E já haviam decidido quem deveria ser o “maior” no reino, embora ainda não soubessem quem deveria se sentar à direita - lugar da mais elevada honra - e quem se sentaria à esquerda. A resposta de Jesus foi clara: Não sabeis o que pedis (22). Algumas pessoas

estão sempre procurando os privilégios de uma posição, sem reconhecer as responsabilidades envolvidas. Aqueles que estiverem mais próximos de Cristo irão sofrer mais. Será que desejavam ser pendurados em uma cruz, ao Seu lado? Não haveria quem rivalizasse com eles para essas posições! No entanto, quando o Senhor perguntou: Podeis vós beber o cálice que eu hei de beber? Eles responderam de forma alegre e inocente: Podemos. Beber o cálice era uma figura muito conhecida dos judeus (cf. SI 75.8). Williams diz: “Aqui, o cálice significa os sofrimentos interiores, mentais e espirituais, que Cristo suportou (cap. 26.39, 42)”.34 O Mestre advertiu os seus dois discípulos: Na verdade bebereis o meu cálice35

(23). Tiago foi o primeiro dos apóstolos a ser martirizado (At 12.2). Em relação aos últimos dias de João existem muitas lendas, mas nada se sabe ao certo, exceto que ele sofreu na ilha de Patmos (Ap 1.9). Jesus acrescentou que não lhe competia atribuir assentos à Sua direita e à Sua

esquerda, mas estes lugares são reservados ...para aqueles para quem meu Pai o tem preparado. Isso parece ser uma negação de autoridade da parte de Cristo. E mais provável que

nessa passagem mas {alia) signifique “exceto” {ei me), como aceito por Blass-Debrunner36 e J. H. Moulton.37 Dessa maneira, essa passagem pode ser assim entendida: “Não me compete dar estes lugares a alguém, exceto àqueles a quem Deus planejou concedê-los”. Isso não significa nenhum favoritismo, mas que os lugares no Reino Messiânico serão dados a cada um de uma forma justa, e de acordo com um critério pré-estabelecido.Quando os outros dez apóstolos perceberam o que Tiago e João haviam feito, eles

indignaram-se contra os dois irmãos (24). Esse verbo significa “rebelar-se, indignarse, irar-se”.38 Eles se ofenderam porque os dois filhos de Zebedeu estavam tentando “alcançar uma posição” superior à deles. Mas, infelizmente, não existem provas de que seus motivos fossem mais puros do que os demonstrados pelos dois irmãos. Jesus reuniu os doze discípulos, e os preveniu de que as políticas de seu Reino eram

diferentes daquelas dos governos terrenos. Ele lembrou que pelos príncipes dos gentios são estes dominados e que os grandes exercem autoridade sobre eles (expressão encontrada apenas aqui e na passagem paralela em Marcos 10.42). O verbo exercem autoridade talvez possa significar “tiranizar sobre alguém”.39 Mas não seria assim entre os seguidores de Cristo (26). Em uma escala ascendente,

Jesus diz primeiramente que todo aquele que quiser ser grande, deve ser um serviçal. Essa palavra corresponde a diakonos, de onde se originou a palavra “diácono”. Em segundo lugar, quem quiser ter algum destaque deve, antes de mais nada, ser servo (27) literalmente, “escravo”. Isso ilustra o antigo ditado: “Para subir, é preciso descer”. Aquele que se tornar servo de todos, será glorificado e elevado por todos. O versículo 28 representa uma grande passagem teológica. Jesus declarou que o

Filho do Homem não veio para ser servido (diakonethenai), mas para servir (diakonesai), e para dar a sua vida em resgate de muitos. A palavra para vida é psyché. Resgate é lytron (somente aqui e em Marcos 10.45), e vem de lyo, “libertar”. Ela significa “preço da liberdade, resgate (especialmente o dinheiro do resgate para a alforria dos escravos...)”.40 Esse uso está bastante ilustrado nos papiros, como mostrou Adolf Deissmann. Ele cita três documentos em papiros datados de 86, 100 e 107 (ou 91) d.C. que usam essa palavra com esse sentido. Seu comentário é o seguinte: “Mas quando alguém ouvia a palavra grega lystron, ou “resgate”, no primeiro século era natural que pensasse no dinheiro necessário para comprar a alforria de um escravo”.41 Em resgate de (anti) muitos. O significado comum da preposição grega usada

nesta expressão nos papiros daquele período era “ao invés de”.42 Essa conotação está claramente evidente nas outras duas passagens em Mateus, onde essa palavra ocorre. Em 2.22 lemos que Arquelau reinava “em lugar de” (anti) seu pai, Herodes. Ele havia tomado o seu lugar. Em 5.38 ouvimos a expressão olho “por” (anti) olho e dente “por” (anti) dente. Obviamente, isso significa um olho retirado “em lugar de” um outro olho, e um dente retirado “em lugar de” um outro dente. De alguma forma misteriosa, que só é conhecida por Deus, Cristo deu a sua vida em resgate, “em lugar de muitos”, para libertá-los da escravidão do pecado e para salvá-los da condenação eterna. O uso da palavra muitos, neste contexto, não nega o fato de que Cristo morreu por

todos. Em 1 Timóteo 2.6, Paulo escreve que Cristo Jesus “deu a si mesmo em preço de redenção [antilytron] por [hyper] todos”. Cristo morreu por todos, mas muitos foram salvos como resultado de sua morte. Sob o título “Verdadeira Grandeza” podemos pensar: 1) No preço da grandeza Podeis vós beber o cálice... e ser batizados com o batismo...? 2) Na prática da grandeza - Todo aquele que quiser, entre vós, fazer-se grande, que seja vosso serviçal; 3) No padrão de grandeza - O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir. 8. A Cura dos Dois Cegos (20.29-34) Esse incidente está registrado nos três Sinóticos (cf. Mc 10.46-52; Lc 18.35-43). Mas

enquanto Mateus menciona dois cegos (30),43 Marcos e Lucas mencionam apenas um. Só Marcos identifica esse homem como sendo Bartimeu. Evidentemente, este era o que mais se destacou entre os dois, e poderia ter se tornado um cristão muito conhecido quando Marcos escreveu o seu Evangelho. Isso aconteceu quando eles estavam Saindo... de Jericó (29), a caminho de Jerusalém. Mas Lucas diz que o cego pediu ajuda quando Jesus estava se aproximando de Jericó (Lc 18.35). Essa diferença nos relatos dos apóstolos deu ocasião a consideráveis comentários (veja as notas sobre Lucas 18.35-43). A solução mais simples talvez seja aceitar a declaração de Lucas como uma mera indicação de que o milagre da cura aconteceu nas proximidades de Jericó. O pedido dos dois cegos - Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós (30)

- é igual ao da mulher siro-fenícia (15.22). Quando a multidão tentou silenciá-los, mandando que ficassem em seus lugares, os cegos continuaram repetindo o seu apelo (31). Isso fez com que Jesus parasse e perguntasse: Que quereis que vos faça? (32). A resposta foi rápida e clara: Senhor, que os nossos olhos sejam abertos (33). Movido de íntima compaixão Jesus tocou-lhes nos olhos (34). Talvez esse ato tenha tido como maior objetivo o fortalecimento da fé deles, e não apenas a cura. ... logo viram (eles, literalmente, “enxergaram” ou “viram novamente”). Fazendo bom uso de sua nova visão, eles o seguiram. Dessa forma, a multidão aumentava enquanto o Mestre seguia o seu caminho para Jerusalém, para se oferecer como o sacrifício expiatório pelos pecados de toda a humanidade. Aquele que curava o corpo, veio especialmente para curar a alma dos homens.

B. A C ontrovérsia, 21.1—23.39

1. A Entrada Triunfal (21.1-11) Esse evento marcou o início da Semana da Paixão.44 Sua importância pode ser vista

no fato de ter sido registrado nos quatro Evangelhos (cf. Mc 11.1-10; Lc 19.29-38; Jo 12.12-19). Até então, João tinha pouco material em comum com os Sinóticos, exceto na passagem em que o Senhor alimentou as cinco mil pessoas. Mas os quatro Evangelhos registram os eventos da Semana da Paixão com muito mais detalhes do que qualquer outro período da vida de Cristo. A Entrada Triunfal aconteceu em um domingo. Depois de curar os dois cegos em

Jericó (20.29-34), Jesus e os seus discípulos, acompanhados pelos peregrinos da Galiléia a caminho da festa da Páscoa, haviam caminhado pela estrada de Jericó em direção a Jerusalém. Isso aconteceu em uma sexta-feira. Desde o pôr-do-sol da sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado (o sábado judaico) Jesus

e os seus discípulos descansaram, talvez na casa de Marta e Maria em Betânia. No domingo, eles foram para Jerusalém e, no caminho, evidentemente pararam em

Betfagé. Essa vila não é mencionada no Antigo Testamento, mas somente em conexão com a Entrada Triunfal no Novo Testamento. O Talmude fala sobre ela como estando próxima a Jerusalém. Dalman diz, com base na literatura rabínica: “Este deve ter sido um distrito situado fora de Jerusalém (um subúrbio, mas não uma unidade independente), que começava na fronteira do santuário, isto é, antes do muro oriental de Jerusalém”.45 Isso pode sugerir um território que incluía o vale de Cedrom e a encosta ocidental do monte das Oliveiras. Jesus enviou dois discípulos - teriam sido Pedro e João? (cf. Mc 14.13 com Lc 22.8)

- com as instruções: Ide à aldeia que está defronte de vós, onde encontrariam uma jumenta presa e um jumentinho com ela (2) que deveriam ser levados ao Mestre. Se alguém protestasse, eles deveriam dizer: o Senhor precisa deles (3). É interessante notar que somente aqui e em uma passagem semelhante em Marcos 11.3 Jesus é chamado de Senhor nos dois primeiros Evangelhos. Lucas, entretanto, emprega esse nome dezesseis vezes. Como de costume, Mateus cita o cumprimento de uma profecia nesse evento da vida

de Cristo. A citação corresponde a Zacarias 9.9 (cf. também Is 62.11) onde está previsto que o Rei-Messias viria humildemente, montado em um jumento (5). Este ato de Jesus mostrou que Ele estava se apresentando oficialmente à nação judaica como o Messias. Josefo registra a crença popular de que o Messias iria aparecer no Monte das Oliveiras.46 Os discípulos cumpriram a sua missão (6). Aparentemente, a procissão triunfal começou perto do Monte das Oliveiras. Os discípulos colocaram as suas roupas sobre o jumento, em lugar da sela, para que o Mestre se sentasse.47 E muitíssima gente - “a maior parte da multidão” (Weymouth, Williams,

Goodspeed, RSV) - estendia as suas vestes pelo caminho (8). Isso mostra o entusiasmo quase tumultuoso desses peregrinos da Galiléia, que tinham visto muitos milagres realizados por Jesus. Agora, eles o aclamaram como o seu Messias (9). A linguagem usada aqui - Filho de Davi - é claramente messiânica.48 Hosana significa “Salve” ou “Salve, nós pedimos”. Aqui ela é provavelmente o mesmo que “Deus salve o Rei!” Hosana é a palavra de abertura do Salmo 118.25: “Um versículo que era cantado nas solenes procissões em volta do altar na Festa dos Tabernáculos, e também em outras ocasiões”.49 Quando Jesus entrou em Jerusalém, toda a cidade se alvoroçou (10). Todos perguntavam: Quem é este? A resposta da multidão foi: Este é Jesus, o Profeta de Nazaré da Galiléia (11). Um sermão para o Domingo de Ramos intitulado “A Entrada Triunfal de Jesus” poderia ter o seguinte enfoque: 1) A preparação, 1-5; 2) A procissão, 6-8; 3) O louvor, 9.

2. A Purificação do Templo (21.12-13) Esse episódio é contado por Mateus imediatamente após a Entrada Triunfal, como

se tivesse acontecido no mesmo dia. Marcos 11.15-19 informa os detalhes, observando que a purificação aconteceu em uma segunda-feira. Esse é outro exemplo do hábito de Mateus descrever duas narrativas em conjunto, colocando-se na posição de um observador. Nesse caso, Lucas acompanhou Mateus (Lc 19.45-48). João registra uma purificação do Templo (Jo 2.13-17) em uma ocasião próxima ao

início do ministério de Cristo. Os três Sinóticos (cf. Mc 11.15-19; Lc 19.45-48) descrevem um evento semelhante no início da Semana da Paixão. A maioria dos estudiosos entende que não houve duas purificações. Porém, Alfred Plummer diz: “Não há nada de incrível em duas purificações”.50 E Salmon escreve: “Estamos à vontade para aceitar o relato de João de que o nosso Senhor fez seu protesto contra a profanação do Templo em uma visita anterior àquela Casa Sagrada, e podemos acreditar que depois de uma ausência de um ano ou mais, ao retornar com um grupo de discípulos da Galiléia, Ele fizesse cumprir as suas exigências com ainda mais rigor”.51 A purificação do Templo é descrita de forma vívida. Jesus expulsou todos os que

vendiam e compravam no templo (12) - hieron, a “Área do Templo”, compreendia cerca de vinte e cinco acres. No Pátio dos Gentios havia um mercado onde ovelhas e bois eram vendidos para os sacrifícios (cf. Jo 2.14). Como a Lei especificava que esses animais deveriam ser “sem mácula” (Ex 12.5) era mais seguro comprá-los no mercado do Templo que era dirigido por parentes do sumo sacerdote. Tudo que fosse comprado ali seria aprovado. Da mesma forma, seria inconveniente para os peregrinos da Galiléia trazer animais em uma viagem tão longa. Aqueles que eram demasiadamente pobres para oferecer uma ovelha tinham permissão de substituí-la por uma pomba (Lv 12.8). Todo o dia era realizada uma animada venda desses animais. Os cambistas também colhiam seus frutos. Todo judeu adulto tinha que pagar uma

taxa anual de meio siclo ao Templo (cf. 17.24). Mas esse pagamento deveria ser feito com a moeda fenícia. Como o dinheiro que os judeus usavam habitualmente era grego ou romano, isso queria dizer que a maioria das pessoas precisava trocar o seu dinheiro. Os sacerdotes tinham permissão de cobrar algo em torno de 15 por cento para fazer essa troca. Edersheim acredita que somente essa taxa poderia alcançar uma soma entre 40.000 a 45.000 dólares por ano,52 isto é, uma renda exorbitante naquela época. Jesus lembrou aos transgressores o que estava escrito nas Escrituras (13): A minha

casa será chamada casa de oração (uma citação de Isaías 56.7). Mas vós a tendes convertido em covil de ladrões (citação de Jeremias 7.11) O texto grego diz “uma caverna de salteadores”. Essa frase devia ser muito familiar aos judeus do primeiro século. A condenação feita por Cristo aos comerciantes do mercado do Templo, chamando-os

de “ladrões” ou “salteadores” encontra sólido suporte nos escritos rabínicos. Eles falam de “Bazares dos filhos de Anás” - o antigo sumo sacerdote que foi sucedido por cinco dos seus filhos, e cujo genro, Caifás, era o sumo sacerdote nessa época. Edersheim chama atenção para a declaração de que “o Sinédrio, quarenta anos antes da destruição de Jerusalém [isto é, no ano 30 d.C., o ano da Crucificação], transferiu seu local de reunião do Pátio das Pedras Lavradas (no lado sul do Pátio dos Sacerdotes) para os Bazares e, em seguida, para a Cidade”.53 Pouco tempo depois, a “indignação popular, três anos antes da destruição de Jerusalém, destruiu os Bazares da família de Anás”.64 A gravidade da situação está refletida nessa declaração: “O Talmude também registra a maldição que um renomado rabino de Jerusalém (Abba Shaul) pronunciou sobre as famílias dos sumo sacerdotes (inclusive a de Anás) que eram ‘eles mesmos os sumo sacerdotes, seus filhos os tesoureiros, seus genros tesoureiros auxiliares, enquanto os seus servos batiam no povo com varas”.55 A purificação do Templo foi o segundo ato messiânico de Jesus na Semana da Paixão. Ela representava uma seqüência apropriada à sua recepção como o “Filho de Davi” na Entrada Triunfal, e era o cumprimento da profecia expressa em Malaquias 3.1-3. Uma leitura cuidadosa dos quatro relatos sobre a purificação do Templo não dará

qualquer suporte à idéia de que Jesus usou de violência física contra as pessoas, ou roubou-as de suas posses. Ele simplesmente fez com que os homens - com seus pertences - se retirassem da área sagrada.

3. O Louvor das Crianças (21.14-17) Essa seção só é encontrada em Mateus. Depois que Jesus mandou os vis

transgressores para fora do Templo, foram ter com ele ao templo cegos e coxos, e curou-os (14). Isso era algo completamente diferente das discussões entre compradores e vendedores, pois revelava a profunda preocupação de Deus com o sofrimento dos homens. Entretanto, essa mudança não agradou aos principais dos sacerdotes (15). Esse

termo incluía, provavelmente, o sumo sacerdote, os antigos sumo sacerdotes, os membros do sexo masculino de suas famílias e talvez os chefes dos vinte e quatro turnos sacerdotais. Quando estes (saduceus) e os escribas (fariseus) ouviram as crianças exclamar: Hosana ao Filho de Davi, eles se indignaram. Essa é exatamente a mesma palavra que foi traduzida como “ficaram tomados de indignação” ou simplesmente “indignaram-se” em 20.24. Em resposta à petulante reclamação deles: Ouves o que estes dizem? (16), Jesus citou uma parte do Salmo 8.2 da Septuaginta (8.3). Quando os líderes religiosos se recusarem a louvá-lo, as crianças preencheram a lacuna. Esta é a primeira passagem nos Evangelhos Sinóticos onde os saduceus são mencionados fazendo oposição direta a Jesus. Até esse ponto os fariseus eram aqueles com quem Ele havia entrado em conflito. Mas quando Jesus purificou o Templo, Ele atingiu não só o prestígio, como também o bolso dos sacerdotes e, por esta razão, eles nunca o perdoaram. Foram eles que dirigiram o ataque final contra Jesus (cf. 27.1, 12; Mc 14.55; 15.10). E. F. Scott diz: “Ele os havia desafiado abertamente, e agora precisavam considerar que medidas haviam de ser tomadas para que o levassem à morte o mais rápido possível”.56 A atitude ciumenta e crítica dos fariseus e saduceus, bem na casa de Deus, sem

dúvida entristeceu o Mestre. Ele os deixou (17) e foi para Betânia (a cerca de três quilômetros de distância, veja o mapa) onde passou a noite. Lá, provavelmente na casa de Marta, Maria e Lázaro - Ele encontrou amor e compreensão. Aquela família era um verdadeiro porto para a sua alma tão perturbada naqueles dias cruciais.

4. A Maldição da Figueira (21.18-22) Esse episódio está registrado em Mateus e Marcos (11.12-14, 20-25). Como indicam

essas duas referências, Marcos separa essa história em duas partes: a maldição da figueira na manhã da segunda-feira, e seu definhamento na manhã da terça-feira. Novamente, Mateus reúne os dois episódios em uma única narrativa, sem nenhum intervalo cronológico. Aconteceu de manhã (18), quando Jesus estava retornando a Jerusalém vindo de

Betânia. Sentindo fome - não sabemos porque nada havia comido naquela manhã - Ele viu uma figueira perto do caminho (19) - literalmente “no caminho”. Quando se aproximou da árvore, encontrou apenas folhas. Geralmente, os figos estão escondidos sob as folhas, mas não havia nenhuma fruta. Então Jesus amaldiçoou a árvore como sinal do desgosto de Deus perante a hipocrisia. Mateus diz: E a figueira secou imediatamente. A palavra grega é bastante forte.

Imediatamente neste texto é parachrema, que significa “naquele momento, em seguida, instantaneamente”.57 Os discípulos perceberam a mudança na aparência da árvore e exclamaram: Como secou imediatamente a figueira?

Como isso pode se harmonizar com a clara indicação de Marcos, de que somente

vinte e quatro horas mais tarde os discípulos observaram a morte da figueira? Já notamos o hábito de Mateus juntar os eventos. Mas ao empregar a palavra “imediatamente” ele introduziu uma questão real. A melhor solução seria considerar secou (19-20) como uma introdução de tempo indeterminado, isto é, “começou a murchar”. Apenas um dia depois de Jesus ter pronunciado a maldição da árvore, os discípulos se surpreenderam ao ver que ela havia secado, e podem ter usado a palavra “imediatamente” para descrever essa rápida mudança. Alguns criticam Jesus por ter destruído a árvore, mas devemos entender que não se

tratava de uma propriedade particular, ela estava “no caminho”. Além disso, Trench faz uma saudável observação: “O homem é o príncipe da criação e todas as coisas existem para servi-lo; elas preenchem sua subordinação quando o servem - na vida ou na morte - produzindo-lhe frutos, ou advertindo através de uma forma figurada qual seria a maldição e o castigo pela infertilidade”.58 Ele acrescenta: “Cristo não atribuiu uma responsabilidade moral à árvore quando a castigou por causa de sua infertilidade, mas Ele realmente lhe atribuiu a capacidade de representar qualidades morais”.59 Certamente valia a pena a perda de uma única árvore, que não pertencia a ninguém em particular, a fim de ensinar aos discípulos uma lição que impactaria milhões de pessoas. Qual era essa lição? Na verdade havia duas. A primeira era uma vívida advertência

contra a hipocrisia - ter as folhas de uma falsa profissão de fé, mas nenhum fruto da graça de Deus. Uma aplicação específica dessa lição era a nação de Israel, cujo povo professava ser filho de Deus, mas que negava essa condição através de sua conduta pecaminosa (cf. Jo 8.33-47). A segunda lição está descrita nos versículos 21 e 22. Jesus declarou solenemente:

Em verdade vos digo que, se tiverdes fé e não duvidardes podereis fazer não só o que acabei de fazer como também coisas muito maiores.60 Depois, Ele deu uma das mais notáveis promessas da Bíblia relacionada à oração: E tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis (22). Essa expressão pode parecer a concessão de uma autoridade incondicional; uma carta branca. Mas existe uma importante condição - crendo. Ninguém pode realmente acreditar em alguma coisa que seja contra a vontade de Deus. Morison entendeu o sentido dessa passagem, quando escreveu: “O que você realmente desejar - se o seu desejo se fundiu ao desejo de Cristo e de seu Pai - você receberá desde que apresente esse desejo diante do trono da graça”.61

5. Controvérsias com os Líderes Judeus (21.23—22.46) a) Com que Autoridade? (21.23-27). Este episódio foi registrado nos três Evangelhos

Sinóticos (cf. Mc 11.27-33; Lc 20.1-8). Quando Jesus chegou ao templo na manhã de terça-feira, Ele foi imediatamente desafiado pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo (23). Esse último termo parece ser uma designação generalizada dos membros do Grande Sinédrio de Jerusalém. Eles perguntaram: Com que autoridade fazes isso? E quem te deu tal autoridade? Com a palavra isso eles se referiam à purificação do Templo no dia anterior. Tendo sido tomados de surpresa por ocasião da purificação do Templo, os líderes judeus não haviam recuperado totalmente seu entendimento naquele momento. Mas durante a noite haviam evidentemente decidido desafiar o direito de Cristo de fazer o que fez. Portanto, perguntaram: “Quem lhe deu autoridade para perturbar o regime estabelecido no Templo?” Muito sabiamente, Cristo respondeu dizendo que, por sua vez, ia lhes fazer uma

pergunta. Se respondessem à sua questão, Ele responderia àquela que lhe fizeram. Sua pergunta os atingiu como a explosão de uma bomba: O batismo de João

donde,era? Do céu ou dos homens? (25) O raciocínio daqueles homens não demonstrava nenhuma preocupação ética. Não era uma questão de saber o que estava certo, mas o que era apropriado. Não disseram: “Qual é a verdade?”. Mas, “Como esta resposta nos afetará?”. Os interlocutores se encontraram no meio de um dilema do qual não havia como escapar. Eles não iriam dizer que vinha do céu e também não podiam, com medo do povo, dizer que vinha dos homens. Portanto, mentiram deliberadamente ao responderem: Não sabemos (27). Com toda razão, Jesus se negou a responder a pergunta deles. Mas a resposta às duas questões é exatamente a mesma: a fonte da autoridade era o céu.

b) AParábola dos Dois Filhos (21.28-32). Essa parábola só é encontrada em Mateus.

Jesus começou com uma pergunta para atrair a atenção: Mas que vos parece? (28). Uma história sobre dois meninos é sempre interessante. Essa parábola tem, de fato, muitas afinidades com a parábola do filho pródigo (Lc 15.11-32). Ambas começam com as mesmas palavras: Um homem tinha dois filhos. Mas aqui a palavra é literalmente “crianças”. Ao primeiro, o pai disse: Filho, vai trabalhar hoje na minha vinha. Ele se recusou, mas, depois, arrependendo-se, foi (29). Esse não é o verbo grego mais comum metanoeo (trinta e quatro vezes no NT), mas o menos comum metamelomai (cinco vezes). Os dois sempre foram traduzidos como “arrepender” (na versão KJV em inglês) e parece que foram usados de forma intercambiável. Mas o verbo metamelomai também poderia ser traduzido como “lamentar”. De imediato, o segundo filho concordou em ir. Mas, na verdade, não obedeceu à

ordem do pai. Quando Jesus perguntou qual deles havia feito a vontade do pai, a resposta óbvia era: O primeiro (31). Então Jesus fez a seguinte aplicação: Os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no Reino de Deus (31). Ele estava repreendendo os líderes judeus que se recusaram a acreditar em João Batista, e que não se arrependeram (metamelomai) depois. Proclamavam que estavam obedecendo a Deus, mas não estavam. Eram iguais ao menino que disse eu vou, mas não foi. No texto grego de Nestle, Westcott e Hort, a ordem dos dois filhos está invertida

(entretanto, a versão RSV mantém a mesma ordem da versão KJV em inglês). Trench acredita que a ordem foi mudada pelo mesmo escriba que pensou que a aplicação era a Jesus (primeiro) e aos gentios (segundo). Ele diz: “Mas a parábola não se aplica principalmente aos judeus e aos gentios, mas se refere aos dois corpos dentro do povo judeu”62 - os fariseus, de um lado, e os publicanos e as meretrizes, de outro.

c) AParábola dos Lavradores Maus (21.33-46). Da relação das trinta parábolas de

Trench, somente três delas são encontradas nos três Evangelhos Sinóticos. As duas anteriores são a parábola do semeador (13.3-9) e a parábola do grão de mostarda (13.3132). Essa é a terceira (cf. Mc 12.1-12; Lc 20.9-19).

Jesus falou sobre um pai de família (oikodespotes) que plantou uma vinha, algo

extremamente comum na Palestina. Ele circundou-a - provavelmente com um muro de pedra - e construiu nela um lagar (33). Esse lagar seria uma depressão contornada com pedras ou argamassa onde o suco das uvas seria pisado. Esses lagares ainda podem ser encontrados hoje na Terra Santa. Para montar guarda na vinha - para ninguém roubar as uvas maduras, ele construiu uma torre - uma plataforma suspensa feita de madeira que, conforme a especificação dos rabinos, deveria ter 4,5 metros de altura e uma base de 1,80 x 1,80 m. Depois, ele alugou a vinha para uns lavradores e viajou para o exterior. E, chegando o tempo dos frutos (34) - setembro do quinto ano depois do plantio

(Lv 19.23-25) - o proprietário enviou alguns servos para que recebessem a sua parte da colheita. Os lavradores feriram um, mataram outro e apedrejaram um terceiro (35). Finalmente, tomado de desespero, o proprietário enviou o seu filho, pensando que

eles iriam ter respeito a meu filho (37). Mas eles o mataram, pensando de forma insensata que poderiam herdar a sua propriedade (38-39). Entretanto, eles foram destruídos, e a vinha foi transferida para lavradores mais dignos (41). Nos versículos 40 e 41, Jesus deixou que os seus inimigos julgassem os pecados que

eles mesmos cometeram, e que pronunciassem a conseqüente sentença. Então Ele revelou a verdade contida na parábola, ao citar o Salmo 118.22-23. A pedra que os edificadores rejeitaram (42) - esse verbo significa “rejeitar (depois de examinar), declarar inútil”63 - havia se tornado a cabeça do ângulo. Essa pedra se refere a uma pedra fundamental, ou à base de um arco. Jesus não deixou margem para dúvida em relação ao que Ele queria dizer com

essa parábola. Ele disse que o Reino de Deus seria retirado dos líderes judeus e entregue a uma outra nação (43, somente em Mateus). Quem caísse sobre esta pedra (Cristo) ficaria despedaçado (cf. Is 8.14-15) e aquele sobre quem ela caísse ficaria reduzido a pó (44). Parece que a primeira imagem está se referindo a alguém que, tropeçando em Cristo, ficaria “moído” (o significado literal de uma palavra pouco usada) como um jarro de água de cerâmica se despedaça ao cair sobre uma pedra. A segunda imagem é, claramente, de juízo. Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus não podiam deixar de ver que essa

parábola falava deles (45). Eles eram os maus lavradores que representavam os antigos líderes da nação, que haviam matado os profetas (servos). Agora, eles mesmos estavam prestes a matar o Filho. O Reino seria dado aos gentios. Enfurecidos, eles queriam matar Jesus; mas temiam o povo, que acreditava que Ele era um profeta (46).

d) A Parábola das Bodas (22.1-14). Essa história tem algumas semelhanças com

a parábola da grande ceia que só é encontrada em Lucas 14.16-24. Essas parábolas estão ligadas principalmente pela recusa dos convidados a comparecer, e pelas ordens dadas aos servos para irem até as estradas e trazerem quaisquer pessoas que pudessem encontrar. As diferenças até agora ultrapassam as semelhanças; deste modo, podem ser consideradas histórias independentes. Em Mateus, há um rei que está preparando a festa de casamento (as bodas) do seu filho. Em Lucas é um “homem” que dá uma “grande ceia”. Aqui está dito que os convidados não quiseram vir (3). Em Lucas eles apresentam desculpas variadas. Aqui lemos que outros servos foram enviados, e que insistiram com os convidados para virem àquela esmerada festa de casamento, onde os bois e os cevados estavam prontos (4). Mas os convidados não fizeram caso (5). Eles foram, um para o seu campo, e outro para o seu negócio. Isso tem alguma semelhança com as duas primeiras desculpas em Lucas. Mas a morte dos servos, pelos convidados (6), e a destruição pelo rei da sua cidade (7) são idéias estranhas à parábola de Lucas. A palavra grega para estradas, nos versículos 9 e 10, é muito diferente. No 10 ela é

simplesmente hodous, “caminho” ou “estrada”. Mas no 9 ela é diexodous ton hodon. A palavra diexodous, no Novo Testamento, só é encontrada aqui. Arndt e Gingrich acreditam que essa frase provavelmente signifique: “O lugar onde uma rua atravessa os limites da cidade e se dirige ao campo aberto”.64 O significado da parábola é bastante óbvio. Os judeus foram os primeiros convidados a gozar das boas coisas do Reino. Quando rejeitaram essa oportunidade, os gentios foram introduzidos. Quando o rei examinou os seus convidados, ele descobriu um homem que não

estava trajado com veste nupcial (11). Ao ser questionado, o homem emudeceu (12). O rei ordenou que ele fosse amarrado e lançado nas trevas exteriores - fazendo um grande contraste com o brilho e a felicidade da festa de casamento. Então, ficamos sabendo que ali haverá pranto e ranger de dentes (13). Essa mesma expressão ocorreu em 8.12. Trata-se de um terrível quadro de tormentos. Novamente (cf. 20.16) lemos a declaração: Porque muitos são chamados, mas poucos, escolhidos (14). Essa história ensina duas lições importantes. A mais importante é que nem todos

que forem chamados serão salvos. Muitos são chamados - a salvação é de provisão universal - mas poucos escolhidos. Não é porque Deus (o Rei) rejeita os homens, mas porque os homens rejeitam o seu chamado. Não existe lugar aqui para a idéia de um “chamado eficiente”. Alguém pode rejeitar o chamado de Deus para a salvação, e assim se tornar um perdido. A outra lição é encontrada no episódio do homem que não tinha a veste nupcial.

Obviamente, o rei havia fornecido uma veste a cada convidado. Mas um homem se recusou a vestir a sua. Ele é do tipo daqueles que preferem sua própria justiça à justiça oferecida por Cristo. Esses serão lançados nas trevas exteriores. Está claro que a qualificação final e determinante para a festa de casamento não era

o convite, ou mesmo a sua aceitação, mas a veste nupcial. Para seu pleno entendimento, devemos associar essa parábola a Apocalipse 19.7-9, onde o traje era “de linho fino, puro e resplandecente; porque o linho fino são as justiças dos santos”. Agora os santos não são simplesmente convidados, mas fazem parte da própria noiva. Se é legítimo ver na veste nupcial de Mateus uma previsão da sua identificação com Apocalipse, então poderíamos afirmar que a justiça e a santidade pessoais seriam as condições básicas (sine qua non) para que alguém participe das bodas do Cordeiro. Isso representa muito mais do que a imputação automática de justiça a todos aqueles que respondem ao convite. Na verdade, trata-se de uma justiça concedida que, embora proporcionada pelo sangue de Jesus, deve ser, entretanto, alcançada por cada convidado, de forma individual e voluntária. Se o convite e a provisão da veste dependem da iniciativa do Rei, a obtenção e o uso dessa veste dependem da iniciativa do convidado. Embora seja um exagero considerar que a parábola esteja ensinando diretamente duas obras da graça, não seria exagero reconhecer nela os requisitos básicos da santidade, que são os meios em que estão incluídas a justificação e a santificação. Em seu sermão sobre a “Veste Nupcial”, John Wesley diz que a veste nupcial significa “santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor”. Ele apresenta dois pontos: 1) Sem a justiça de Cristo não podemos ter nenhuma pretensão em relação à glória; e 2) Sem a santidade, não seríamos adequados a ela.

e) A Questão dos Herodianos (22.15-22). Neste capítulo três grupos de líderes judeus

questionam Jesus. Em cada oportunidade Ele responde e faz uma pergunta que, efetivamente, silencia os seus interlocutores. Todos esses quatro itens foram registrados em cada um dos Evangelhos Sinóticos (cf. Mc 12.13-37; Lc 20.20-44). Aparentemente, essas discussões tiveram lugar na terça ou na quarta-feira da Semana da Paixão. Os fariseus foram os instigadores da primeira pergunta. Eles consultaram entre

si como o surpreenderiam em alguma palavra (15) - literalmente, “em uma palavra” ou “em uma expressão”. O verbo é usado na Septuaginta, mas em nenhum outro lugar do grego clássico. Trata-se de um termo próprio da caça e significa “armar uma cilada”. Arndt e Gingrich traduziram essa cláusula “a fim de poderem armar uma cilada com alguma coisa que Ele dissesse”.66 O motivo deles era malicioso. Josefo descreve “três seitas filosóficas entre os judeus”; os fariseus, os saduceus e os

essênios66 (atualmente identificados com a comunidade de Qumrã que produziu os Rolos do Mar Morto). Os essênios não foram mencionados no Novo Testamento. De forma estranha, Josefo não faz referência aos herodianos que são mencionados três vezes nos Evangelhos (cf. Mc 3.6; 12.13). Mas sobre eles nada se conhece com certeza. O nome sugere que eram seguidores de Herodes Antipas e essa é uma suposição tão boa quanto qualquer outra.67 Os fariseus haviam usado um artifício sorrateiro (15). Eles enviaram a Jesus alguns de seus discípulos, com os herodianos (16). Geralmente, esses dois grupos estavam sempre se enfrentando porque os fariseus se opunham ao governo de Roma. Mas agora haviam se unido na inimizade comum contra Cristo. A lisonjeira abordagem usada por esses homens era totalmente falsa. Eles tentaram

pegar Jesus desprevenido, sugerindo que Ele sempre falava a verdade e não se importava com o que as pessoas pensassem a seu respeito. Eles esperavam desse modo levar Jesus a se incriminar fazendo uma afirmação imprudente. Então armaram a cilada: É lícito pagar o tributo a César, ou não? (17) A palavra

tributo é kensos (em latim, census). Esse era um imposto individual que os judeus achavam particularmente ofensivo por lembrar que estavam sujeitos a um poderio estrangeiro. Os interlocutores acreditavam que haviam colocado firmemente o Mestre nas teias

de um dilema do qual Ele não tinha qualquer possibilidade de escapar. Se Ele respondesse “sim”, os fariseus o exporiam ao público como um judeu desleal. Se dissesse “não”, os herodianos o denunciariam ao governo de Roma como culpado de sedição. Uma das piores ofensas que uma pessoa podia cometer aos olhos dos romanos era se opor ao pagamento do imposto. Jesus, conhecendo a sua malícia, disse: Por que me experimentais, hipócritas? (18). Carr comenta o versículo 16 com muita propriedade: “Nada podia exceder a insidiosa hipocrisia desse ataque contra Jesus”.

ortodoxia só poderá ser preservada através de um cuidadoso e constante estudo da Palavra de Deus, ao lado de uma experiência do poder e da presença do Espírito Santo. O Mestre prosseguiu dizendo que não existe casamento na vida futura, mas serão como os anjos no céu (30);71 isto é, imortais, e não reprodutivos. Depois Jesus os desafiou com as suas próprias Escrituras. Podemos observar que Josefo disse que os saduceus “desconsideram a observação de qualquer coisa além daquilo que a lei lhes prescreve”, isto é, eles só aceitam o Pentateuco (Torá), e rejeitam todo o restante do Antigo Testamento. Eles negavam especificamente a ressurreição porque, de acordo com a sua interpretação, esta doutrina não havia sido ensinada na Torá. Então, Jesus enfrentou-os em seu próprio campo. Ele citou Êxodo 3.6 - as palavras ditas pelo Senhor a Moisés na sarça ardente - e fez a sua aplicação: Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos (32). Se, na época de Moisés, Deus era o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e como esses homens já haviam morrido há muito tempo, havia uma clara implicação de que estavam vivendo em um estado de imortalidade, embora tivessem deixado de viver na terra. A relação dessa passagem com a ressurreição foi assim expressa por Bengel: “Deus... não é o Deus daquilo que não é: Ele é o Deus vivo. Portanto, aqueles que possuem a Deus também devem estar vivos. E para muitos desses, cuja vida foi suspensa na terra, deverão reviver eternamente”.72 O efeito das palavras de Cristo sobre a multidão é descrito de forma vívida (33). As

pessoas ficaram maravilhadas da sua doutrina (em grego, “ensino”). O verbo significa literalmente “atingir vigorosamente”, sendo igual à forma passiva, “foram tomados de admiração”.73 Além disso, esse verbo está no tempo imperfeito. Carr explica a força dessa expressão. Ele diz: “O imperfeito expressa muito bem a emotividade da admiração que tomou conta da multidão, de pessoa em pessoa”.74

g) A Pergunta dos Fariseus (22.34-40). Quando os fariseus ouviram que Jesus havia

eficientemente calado - o termo grego diz “emudecido”, “silenciado” - seus oponentes, os saduceus, eles sem dúvida ficaram muito contentes. Mas resolveram experimentá-lo novamente (cf. 15). Um deles, certo doutor da lei, isto é, um professor da lei mosaica - fez uma pergunta a Cristo, para o experimentar (35). Temos novamente o problema de como traduzir a palavra peirazon, “tentar” (ASV), “testar” (RSV, cf. NEB), ou “tentando” (KJV). O significado fundamental do verbo é “tentar, experimentar, colocar em teste”.75 Se o texto sugerir algum motivo mal-intencionado, essa palavra pode ser traduzida como “tentar”. Poderíamos entender que esse era o caso nessa passagem, se não fosse pelo relato paralelo de Marcos. Ele diz, a respeito dessa pergunta, que o “escriba” (doutor da lei) “havia respondido bem”, retratando um mútuo apreço entre Jesus e o “doutor da lei”. Provavelmente, então, “testar” seria a melhor tradução aqui. O escriba perguntou: Mestre (em grego, “Professor”) qual é o grande mandamento da lei? (36). O que significa, literalmente, “de que tipo”. Plummer sugere que esse doutor da lei queria um “cânon de classificação”. Ele diz: “Os rabinos dividiam os 613 preceitos da Lei (248 mandamentos e 365 proibições) em “pesados” e “leves”, mas essa classificação gerou muitos debates”.76 Ao responder, Jesus citou Deuteronômio 6.5: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo

o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento (37). Marcos e Lucas acrescentam: “e de todas as tuas forças”. Na verdade, a passagem em hebraico do Antigo Testamento diz “coração”, “alma” e “força”. ASeptuaginta diz “coração”, “alma” e “poder” [dynamis) e alguns manuscritos trazem o termo “pensamento” (dianoia). Parece que Jesus fez uma combinação desses quatro significados. Carr explica os três termos de Mateus da seguinte maneira: “Kardia inclui as

emoções, a vontade, e o propósito; psyché, as faculdades espirituais; e dianoia, o intelecto, a faculdade de pensar”.77 Mas é impossível fazer uma distinção precisa e completa dessas palavras. Por exemplo, para psyché Arndt e Gingrich sugerem, com o apoio das Escrituras, os seguintes significados (dentre outros): “vida, princípio da vida”; “vida terrena”; “a alma como sede e centro da vida interior do homem em seus muitos e variados aspectos”; “a alma como sede e centro da vida que transcende o terreno”.78 Eles observam: “Muitas vezes é impossível desenhar linhas rápidas e firmes entre os significados dessas palavras, que possuem múltiplos aspectos”.79 O mesmo poderia ser dito para kardia (coração). Mas o significado claro é que devemos amar a Deus com todo o nosso ser. A palavra

grega para amor, agapao, significa muito mais do que afeto e emoção (expressa pelo termo phileo). Cremer diz, a respeito de agapao: “Essa palavra sozinha não exclui o afeto, mas é sempre o afeto moral de uma vontade consciente e deliberada que ela contém, e nao o impulso natural de um sentimento imediato”.80 Depois de identificar Deuteronômio 6.5 como o primeiro e grande mandamento

(38), Jesus continuou e disse que o segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (39). Essa é uma citação de Levítico 19.18. Novamente, o verbo é agapao. Segundo Abbott-Smith: “Agapao é uma palavra que foi usada adequadamente no Novo Testamento em relação ao amor cristão a Deus e aos homens, o afeto espiritual que acompanha a direção da vontade e que é, portanto, diferente do sentimento que é instintivo e irracional, podendo ser ordenado como um dever”.81 Jesus acrescentou (apenas em Mateus): Desses dois mandamentos dependem

toda a lei e os profetas (40) - isto é, todo o Antigo Testamento. Esses são os dois mandamentos-chave, que demonstram o significado de todos os demais. Como a essência de todo o Antigo Testamento está contida nesses mandamentos, é

óbvio que a santidade como padrão para o povo de Deus não é isolada na dispensação do Evangelho. O que é especial na nova aliança é o meio com o qual os homens devem atender a esse padrão, e a medida (ou o grau de perfeição) com que devem cumpri-lo. O poder para alcançar a plenitude interior tornou-se agora a herança de cada filho de Deus. E um poder que altera de tal maneira o afeto e preenche o ser com o Espírito Santo, que amar a Deus com todo o ser torna-se uma atitude natural e espontânea (Rm 5.5). Quando Deus promete que na nova aliança Ele irá colocar as suas leis no entendimento e no coração do seu povo (Hb 8.10; Jr 31.33), Ele está se referindo, acima de tudo, a estes dois mandamentos, pois eles incluem todos os outros.

h) A Pergunta de Jesus (22.41-46). Os fariseus haviam questionado a Cristo, e Ele

havia respondido efetivamente às suas perguntas. Agora, Ele faz uma pergunta que eles não podem responder. Tirando vantagem do fato de ter um considerável grupo de fariseus à sua frente

(41), Jesus perguntou primeiro: Que pensais vós do Cristo? De quem é filho? Eles responderam, De Davi (42). Esse era um conceito popular daquela época,82 baseado em algumas passagens das Escrituras: SI 89.20-37; Is 9.2-7; 11.1-9; Jr 23.5-6; 33.14-18; Ez 34.23-24; 37.24. Jesus perguntou: Como é, então, que Davi, em espírito, lhe chama Senhor?

(43). Em espírito significa “inspirado pelo Espírito” (RSV), isto é, o Espírito Santo. Dessa forma, Jesus afirmou, ao mesmo tempo, que Davi era o autor do Salmo 110 e que sua inspiração era divina. Então, Ele citou o primeiro versículo desse Salmo Messiânico:83 Disse o Senhor ao meu Senhor (44), quer dizer em hebraico “Jeová [ou Yahweh] disse ao meu Adonai”. No Antigo Testamento geralmente Senhor é a tradução de Yahweh e Senhor a tradução de Adonai. Em grego, é usada a palavra kyrios. Os judeus não podiam, ou não queriam, responder a essa questão: Se Davi, pois,

lhe chama Senhor, como é seu filho? (45) A resposta cristã é que o Senhor de Davi tornou-se o filho de Davi através da Encarnação. O versículo 46 indica que Jesus havia eficientemente calado todos os seus oponentes. Ninguém mais, depois daquele dia tão significativo, ousaria fazer qualquer tipo de pergunta a Jesus.

6. Censuras aos Fariseus (23.1-36) a)

Posição e Orgulho (23.1-12). Jesus se dirigiu à multidão e aos seus discípulos

(1). Os fariseus haviam revelado a maldade de seu coração em seus esforços para armar uma cilada para Jesus. Então, Aquele que “sabia o que havia no homem” (Jo 2.25) retratou os pecados que estavam abrigados no interior desses líderes religiosos. A posição que os escribas e os fariseus (2) adotavam era de que eles ocupavam

a cadeira de Moisés (kathedra). Portanto, eles falavam ex-cathedra - com autoridade oficial - e assim as suas palavras deveriam ser obedecidas (3). Mas suas obras não deveriam ser imitadas, pois diziam uma coisa e faziam outra. Obviamente, as regras que ditavam, sobre como proceder, deveriam ser entendidas com um sentido diferente, pois em outra passagem o Mestre os condena por estarem anulando a Palavra de Deus quando ensinavam a tradição dos anciãos (15.1-6). Morison sugere aqui o seu verdadeiro significado: “Façam todas as coisas que os escribas e os fariseus lhes apresentarem ao traduzir as palavras do Livro de Deus, e qualquer coisa que eles lhe mostrarem em seus ensinos como sendo agradáveis a Deus, e que estejam de acordo com o Livro de Deus”.84 Jesus denunciou a insensibilidade desses mestres da Lei: Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem sobre os ombros dos homens; eles, porém, nem com o dedo querem movê-los (4). Carr entendeu a imagem transmitida por essas palavras: “Trata-se da imagem de um condutor de camelo ou de jumento... que inventa cargas, não apenas pesadas, mas também desajeitadas e difíceis de carregar, e as coloca nos ombros do animal, e que se mantém indiferente e não levanta sequer um dedo para aliviar ou mesmo para ajustar essa carga”.85 Essa atitude está em alarmante contraste com o bondoso convite do Mestre em 11.28-30. A religião legalista sempre representa um fardo demasiado pesado para se carregar. Nela não existem alegrias. A atitude de orgulho ostensivo era um dos constantes pecados dos fariseus. Jesus os acusou de praticar as suas boas ações a fim de serem vistos pelos homens (5). Naturalmente, nem todos os fariseus eram assim, mas a maioria deles adotava essa conduta. De acordo com essa exibição exterior de piedade, eles usavam grandes filactérios. Essa é uma palavra grega que só é encontrada no Novo Testamento. No grego clássico ela significava um “posto avançado” ou uma “fortaleza”. Plutarco emprega essa palavra para “amuleto”, isto é, um talismã para fins de proteção. Essa palavra vem de um verbo que significa “proteger”, mas aqui ela está se referindo a pequenas caixas de couro sobre a testa e o braço esquerdo, usadas durante as orações matinais. A caixa sobre a testa tinha quatro pequenos compartimentos, e em cada um deles

havia um minúsculo pergaminho que trazia uma parte das Escrituras. As quatro passagens eram: Êxodo 13.1-10,11-16; Deuteronômio 6.4-9; 11.13-21. O filactério usado sobre o braço tinha apenas um compartimento e um único rolo com as Escrituras. A ordem de atar as palavras das Escrituras “por sinal na tua mão” e “por testeiras entre os teus olhos” era obedecida literalmente, quando provavelmente deveria ser entendida de forma figurada. Jesus também disse que os fariseus alargavam as franjas das suas vestes. A Lei

prescrevia que os judeus piedosos deveriam colocar franjas em suas vestes com um “cordão azul” (Nm 15.38). Portanto, os judeus colocavam borlas azuis nas barras de seus mantos. Mas Cristo

declarou que os escribas só faziam isso para se exibir publicamente, e não por razões de piedade pessoal. O orgulho egoísta deles também se manifestava na maneira como procuravam os

primeiros lugares nas ceias (6). Estes eram literalmente “os primeiros divãs” - aqueles sobre os quais as pessoas se reclinavam em volta da mesa nas refeições (exceto nas casas mais pobres). As primeiras cadeiras também formavam um conjunto especial. M’Neile diz: “As cadeiras principais ficavam sobre uma plataforma de frente para a congregação com as costas voltadas para a arca na qual estavam guardados os rolos das Escrituras”.86 Jesus prosseguiu, dizendo que os escribas adoravam as saudações nas praças

(Agora) e serem chamados... Rabi (7).87 Essa era a forma habitual de tratamento com que os sábios eram saudados”.88 Essa palavra significa “meu mestre” (o “z” final representa “meu” em hebraico). Dalman diz que “por consenso geral o ‘Rabi’ era reconhecido como superior a ‘Rab’, e ‘Rabban’ era mais importante que ‘Rabi’ ”f Mas os discípulos não deveriam almejar ser chamados de Rabi (8). Essa ordem

devia ser entendida “no espírito, não na letra” (Rm 2.29), pois “a letra mata, e o Espírito vivifica” (2 Co 3.6). Jesus não estava ditando regras precisas sobre o uso técnico de títulos como “Doutor” ou “Reverendo”. Antes, Ele estava falando contra o espírito de orgulho que faz com que os homens exijam homenagens por parte de outros. A atitude mais adequada é reconhecer que somente um é Mestre - outro texto grego diz “professor”90 a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos. E sempre adequado chamar um companheiro cristão de “irmão” (cf. At 9.17). Jesus também advertiu contra chamar alguém na terra de nosso pai, porque um só

é o nosso Pai, o qual está nos céus (9). Shurer diz: “Os Rabis exigiam de seus alunos a mais absoluta reverência, sobrepondo-se até mesmo à honra que sentiam em relação aos seus pais .

Ele cita um número considerável de sólidas declarações dos rabinos judeus para dar

suporte a essa afirmação. Essa era exatamente a atitude que Cristo estava condenando. Vocês não deverão ser chamados de mestres, disse Jesus, porque um só é o vosso

Mestre, que é o Cristo (10). A palavra para Mestre é kathegetes, e esse termo só é encontrado nessa passagem, no Novo Testamento. Ele vem de um verbo cujo significado é “ir adiante, guiar”, e assim o seu significado básico é “dirigir”. Mas ele também pode ser usado para “professor” e, no grego moderno, este é o seu significado. Um só é o vosso Mestre é uma expressão que está enfatizando a autoridade singular de Jesus como o Filho de Deus. Então, Jesus estabeleceu os princípios gerais (já enunciados em 20.26): Porém o

maior dentre vós será vosso servo (11). A última palavra é diakonos, cuja origem é desconhecida. Mas foi usada no grego clássico para pessoas que costumavam servir às mesas, e essa é a idéia transmitida aqui. Esse parágrafo termina com uma advertência de que o que a si mesmo se exaltar será humilhado, mas o que a si mesmo se humilhar (a mesma palavra grega) será exaltado (12).

b) Os “Ais” Proferidos Contra os Hipócritas (23.13-36). Nessa seção existem sete92

“ais” pronunciados contra os escribas e os fariseus por causa de sua hipocrisia. Cada um deles começa com a fórmula: Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! (13, 14, 15, 23, 25, 27, 29), exceto o versículo 16 que diz: Ai de vós, condutores cegos! Contando o versículo 13 como 14, M’Neile faz o seguinte resumo: “Três ais (w. 14-22) se referem aos ensinos dos escribas, três (w. 23-28) à vida dos fariseus, e o último (w. 29-32) é dirigido diretamente à nação como um todo”.93 A expressão Ai de vós pode ser traduzida como “Cuidai-vos!”. Thayer diz que ouai é

uma “interjeição de dor e de denúncia”.94 Seria melhor tratar esse termo como a expressão das duas idéias. A compaixão de Cristo fez com que Ele sentisse tristeza pelo egoísmo dos escribas e fariseus. A santidade de Cristo o impelia a denunciar os pecados daqueles homens, e a pronunciar a sentença que mereciam. Hipócritas é a exata transliteração da palavra grega hypocrites (singular). Esse

termo é usado no grego clássico para designar um ator que se apresenta em um palco. Naqueles dias, quando não havia meios eletrônicos de amplificação da voz, era difícil para os atores no palco serem ouvidos por uma platéia composta por 25.000 ou mais pessoas acomodadas em um anfiteatro. Portanto, eles usavam máscaras com pequenos megafones escondidos. Dessa forma, literalmente falando, o hipócrita é aquele que usa uma máscara, ou que mostra um rosto falso para o público.

1) Perversidade (23.13). Essa é uma terrível acusação que Jesus faz contra os líderes

judeus. Ele os acusa de fechar o Reino dos céus aos homens quando o rejeitam, porque Ele é a personificação desse Reino; eles não entram, nem deixam que os outros entrem. Essa é a acusação mais grave de todas, e Lucas a coloca no final da sua relação como um clímax (Lc 11.52). Sobre a ordem observada aqui, M’Neile comenta: “Em Mateus, a sua posição produz um agudo contraste entre o efeito intimidador do ensino dos escribas e seus esforços de proselitismo (v. 15), e também entre ‘Reino dos Céus’ e ‘Geena’ ”?5 João Batista havia aberto a porta do arrependimento para que as pessoas tivessem acesso ao Reino, porém os escribas tentavam fechá-la. Para comentários sobre o versículo 14, veja a análise de Marcos 12.40 e Lucas 20.47. 2) Proselitismo (23.15). O zelo típico dos judeus é retratado de forma vívida por

Jesus, ao dizer que eles percorriam o mar e a terra para fazer um prosélito. Essa frase é ilustrada pelo que aconteceu em Roma, onde os judeus viviam desde o século II a.C. Pope escreve: “Desde o início, os judeus em Roma demonstraram um espírito tão agressivo de proselitismo, que foram acusados de procurar infectar os romanos com a sua religião, e o governo expulsou da cidade os seus principais propagadores em 139 a.C.”.96 Pope também diz que a última parte desse versículo, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós, é uma referência à obsessão que os fariseus tinham pela pureza ritual, que incutiam com redobrado esforço em seus prosélitos.97

3) Os Juramentos (23.16-22). A ridícula casuística da maior parte do raciocínio dos

rabinos está claramente ilustrada aqui. Esses condutores cegos ensinavam que jurar pelo Templo nada significava, mas jurar pelo ouro do Templo resultava em um compromisso obrigatório. Parece não haver nenhuma explicação disponível sobre a razão desse tipo de pensamento religioso ter se desenvolvido entre os fariseus. Jesus respondeu a tal absurdo com uma simples lógica. A única coisa que torna o ouro sagrado é o fato de ele estar ligado ao Templo (17). O mesmo acontece com a oferta sobre o altar (18-19). Cristo advertiu claramente contra os juramentos descuidados (20-22).

4) Dízimo (23.23-34). Os fariseus eram muito escrupulosos a respeito do pagamento

do dízimo sobre a hortelã, o endro (ou “anis”), e o cominho (23) [ervas pequenas]. Os israelitas eram obrigados por Lei a pagar o dízimo sobre suas colheitas - “de toda a novidade” - e especificamente sobre o cereal, o mosto, e o azeite (Dt 14.22-23). “Os rabinos, ao construírem uma barreira em torno da lei, incluíam vegetais, frutas e nozes nesse mandamento.”98 Em sua escrupulosa atenção aos mínimos detalhes do pagamento do dízimo, os

escribas e os fariseus haviam dezprezado (ou negligenciado) o mais importante da lei. Isso parece refletir a distinção feita pelos rabinos entre mandamentos “pesados” e “leves”.99 O Talmude judaico faz a seguinte declaração: “A observância dos menores preceitos é recompensada na terra; a observância dos maiores preceitos é recompensada no céu”.100 O mais importante da Lei é juízo (“justiça”), misericórdia e fé (“ou fidelidade”). Jesus disse que eles deveriam fazer essas coisas sem “negligenciar” (o mesmo verbo utilizado acima) as outras - o pagamento dos vários dízimos. A frase coais um mosquito (24) sugere o quadro mental de um homem se esforçando para apanhar um mosquito que está no ar. Esta interpretação está de acordo com o significado do texto grego. A tradução certa do termo grego é “coar”, como Tyndale adotou na primeira versão do Novo Testamento impressa em inglês (1525). Goodspeed, por exemplo, diz: “Trata-se de um erro de impressão [traduzir a palavra grega como retirar] que foi aceito na King James Version, o qual, por alguma razão, nunca foi corrigido”.101 O verdadeiro quadro é o de um rigoroso fariseu coando cuidadosamente a água que

vai beber através de um coador feito de tecido, para ter certeza de não engolir acidentalmente um mosquito, o menor animal impuro que existe. Enquanto está envolvido nessa meticulosa tarefa, eis que ele está engolindo um

camelo inteiro - um dos maiores animais impuros. Como na referência a um camelo passando pelo fundo de uma agulha (19.24), Jesus estava propositalmente usando uma figura de retórica para sacudir os seus ouvintes, e levá-los a entender o assunto. Atualmente, os rígidos legalistas muitas vezes oferecem exemplos dessa atitude farisaica a que Jesus estava se referindo. Com base nesse capítulo, Richard Glover indica os perigos da hipocrisia. 1) A hipocrisia é um capataz exigente, 4; 2) A hipocrisia vive apenas para louvar o homem, 5-7; 3) Os danos da hipocrisia, 13-22; 4) A hipocrisia só se preocupa com os aspectos menores da religião, 23-24.

5) Purificação (23.25-26). Jesus disse que os fariseus limpavam o exterior do copo e

do prato (“travessa”),102 mas que o interior daqueles homens estava cheio de rapina “pilhagem, roubo” - e de iniqüidade (“incontinência” ou “auto-indulgência”; 25). Ele mandou que o fariseu cego (26) limpasse primeiro o interior do copo e do prato. O significado dessa frase é o seguinte: “O exterior do copo e do prato representa o comportamento e a conduta exterior dos fariseus, e o interior do copo é o seu coração e a sua vida real”.103 Essas duas referências mostram a diferença básica entre o judaísmo daquela época, e o cristianismo.

6) Sepulcros Caiados (23.27-28). M’Neile nos dá a seguinte explicação sobre o que

Jesus está dizendo: “Caminhar sobre um sepulcro causava contaminação, que deveria ser evitada por todos aqueles que desejassem entrar no Templo (cf. Nm 19.16); daí o costume... de pintar as sepulturas com cal no 15" dia do mês de Adar [março-abril], antes da Páscoa”.104 Jesus estava pleiteando algo melhor do que um cristianismo caiado, de excelente aparência superficial, porém repleto de atitudes pecaminosas. A principal culpa era a falta de sinceridade interior. A justiça deles era totalmente

superficial; portanto, era apenas um engodo. Ela foi posteriormente condenada por causa de sua exagerada piedade em coisas triviais, por ser apenas uma fachada para a negligência em relação aos princípios importantes como o juízo, a misericórdia e a fé. Se desejarmos fugir desta rigorosa condenação, nossa ética deverá ser profundamente sólida e nosso coração genuinamente santo. Devemos ter uma beleza interior, sempre e em primeiro lugar aos olhos de Deus, mesmo que não consigamos atingir, às vezes, uma conduta exterior perfeitamente bela. Tal pureza espiritual requer um Salvador santificador, e a constante presença do Espírito Santo habitando em nosso interior.

7) Adorar o Passado (23.29-36). Existem três estágios na vida de toda organização

religiosa. Primeiramente, a organização se caracteriza por ser um movimento vibrante, vigoroso, ativo e agressivo. Depois, torna-se uma instituição com “mais arreios do que cavalos”. Finalmente, sua vitalidade desaparece e ela se torna um museu onde os ossos dos antigos líderes são colocados em exposição. O judaísmo havia alcançado esse terceiro estágio. De forma irônica, porém triste, Jesus declarou aos escribas: Enchei vós, pois, a medida de vossos pais (32); isto é, eles estavam concluindo as perseguições que os seus pais haviam iniciado. Estavam admitindo que eram os filhos (“descendentes”) daqueles que mataram os profetas (31). As palavras do versículo 33 soam de forma estranha nos lábios de Cristo. Mas, aqueles a quem Ele se dirigia já estavam tramando matar o imaculado Salvador da humanidade. O Livro de Atos (por exemplo, 7.58; 8.1-3; 9.1-2) relata o cumprimento das profecias do versículo 34. Abel (35) foi o primeiro homem a ser assassinado. O caso de Zacarias105 está registrado

no livro que faz parte do final do Antigo Testamento da Bíblia hebraica (Crônicas). Portanto, essa expressão corresponde aqui, mais ou menos, à frase atual “de Gênesis a Apocalipse”. O versículo 35 sugere uma participação nacional na culpa das gerações precedentes.

Essa geração havia cometido o supremo pecado de rejeitar a Jesus Cristo. De certa forma, a culpa acumulada das gerações precedentes ao perseguir os profetas poderia, portanto, recair sobre ela. As palavras do versículo 36 se concretizaram com terrível precisão no ano 70 d.C., quando Jerusalém foi invadida pelos romanos e seu Templo foi destruído.

7. O Lamento por Jerusalém (23.37-39). A angústia contida nessas palavras desafia qualquer descrição. Jesus havia se oferecido aos judeus como seu Rei e Messias. Os líderes o rejeitaram e logo iriam condenálo à morte. Tu não quiseste (37) são as palavras escritas como um epitáfio dos séculos. Cristo declarou que os judeus não o veriam mais até à ocasião em que o receberiam com alegria em sua segunda vinda à terra, com a mesma aclamação que os peregrinos da Galiléia o haviam recebido em sua Entrada Triunfal 





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