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Seção XI A PAIXÃO Mateus 26.1—27.66

A. A Preparação Para a M orte, 26.1—27.31 1. Preliminares (26.1-5) a) A Perspectiva (26.1-2). Pela última vez encontramos a fórmula: E aconteceu

que, quando Jesus concluiu todos esses discursos (1), que aparece no final de cada um dos cinco grandes discursos de Jesus no texto de Mateus (cf. 7.28; 11.1; 13.53; 19.1). E aconteceu é kai egeneto, uma expressão da Septuaginta, encontrada normalmente no texto de Lucas, mas que só é usada por Mateus com esta fórmula. Jesus predisse a sua paixão três vezes (16.21; 17.22-23; 20.17-19). Agora Ele lhes

revela que faltavam apenas dois dias para que Ele fosse traído (2). Como Jesus comemorou a Páscoa com os seus discípulos na noite de quinta-feira, esse dia seria a terçafeira. Parece que o Mestre pode ter passado a quarta-feira separado do povo, instruindo os seus discípulos em particular. Será entregue deveria ser “está sendo traído” (o presente profético).1

b) A Conspiração (26.3-5). Os príncipes dos sacerdotes, e os escribas,2 e os

anciãos do povo (3) formavam o grande Sinédrio em Jerusalém, que era o corpo judicial supremo da nação judaica. Este grupo se reunia na sala (em grego, “corte”) do sumo sacerdote, Caifás, que esteve neste cargo de 18 a 36 d.C. Consultaram-se (“trocaram idéias”) sobre como poderiam prender Jesus com dolo

- a palavra originariamente queria dizer uma “isca” ou “armadilha” e, portanto, “artifício” ou “engano” - e o matarem (4). Eles queriam evitar fazer isso durante a festa, para que não houvesse alvoroço (“tumulto”, “reação das multidões”) entre o povo (5). O fanatismo religioso sempre se exaltava durante a época da Páscoa, que comemorava a libertação dos israelitas da escravidão no Egito. Era uma época em que só era necessária uma faísca para acender o fogo da revolução contra o governo romano. Os líderes judeus sabiam muito bem disso. Eles teriam preferido esperar até que os peregrinos (mais de um milhão de pessoas) tivessem deixado Jerusalém. Mas quando Judas se ofereceu para trair o seu Mestre, eles evidentemente decidiram ir em frente logo.

2. A Unção em Betânia (26.6-13) João 12.2-8 coloca esta unção - que não deve ser confundida com aquela do texto de

Lucas 7.36-50 (veja os comentários ali) - “seis dias antes da Páscoa” (Jo 12.1). Isso seria na noite de sexta-feira ou do sábado anterior à semana da Paixão. Porém Marcos (14.39) e Mateus a registram aqui, exatamente antes da traição. Parece ser melhor seguir a cronologia de João, onde a relação do tempo é mais precisa. Andrews sugere a solução mais satisfatória para o problema: “Uma verificação minuciosa dos textos de Mateus e de Marcos mostra que o relato deles da ceia é feito como um parêntesis”.3 A razão para isso é que eles aparentemente queriam mostrar que foi a unção que precipitou o ato de Judas, de ir ter com os príncipes dos sacerdotes (14). Plummer concorda com isso, e escreve: “Evidentemente, devemos supor que a proposta foi uma conseqüência... daquele acontecimento”.4 A unção aconteceu em Betânia (a três quilômetros de Jerusalém. Veja o mapa), em

casa de Simão, o leproso (6). Simão era um nome muito comum e este homem pode ter sido curado por Jesus da lepra que o acometia. Então veio uma mulher - João a identifica como Maria (a irmã de Marta) - com um

vaso de alabastro (7). Aversão em grego diz simplesmente alabastron. Arndt e Gingrich definem esta palavra da seguinte forma: “Alabastro, ou seja, um frasco de alabastro para a unção, um recipiente com um gargalo comprido que era quebrado quando o seu conteúdo era usado”.5 O ungüento era de grande valor (literalmente, “de enorme valor”). Este ungüento poderia ter reprgsentado as economias de toda a sua vida. Ela derramou-lho sobre a cabeça de Jesus. Ela não se concentrou em aplicá-lo gota a gota, como normalmente se usaria um perfume caro. Ao invés disso, ela quebrou o gargalo estreito do vaso (Mc 14.3) e com amor e devoção derramou o seu conteúdo sobre a cabeça do Mestre. João 12.3 diz que foi sobre os seus pés. Era costume ungir a cabeça e os pés (cf. Lc 7.38, 46); assim, Maria naturalmente fez as duas coisas. A expressão quando ele estava assentado à mesa pode ser traduzida como: “quando Ele se recostava sobre a mesa”. Os discípulos indignaram-se (8), a mesma palavra de 20.24 e 21.15 (veja os comentários sobre estas passagens) - por causa desse desperdício. João 12.4 nos diz que foi Judas Iscariotes quem fez a crítica. Ele parece ter ficado furioso ao ver todo este “desperdício”. Mateus afirma que todos os discípulos (Marcos diz “alguns”) pensavam no aspecto material. Eles não captaram a fragrância da devoção de Maria, simbolizada pelo perfume. Mas Jesus defendeu o ato dela. Ele disse (10): Ela “praticou uma boa ação para

comigo”.6 Eles sempre teriam os pobres - a história comprova isso - mas Jesus em breve iria embora (11). Então o Mestre explicou o significado do ato da mulher: ...fê-lo preparando-me para o meu sepultamento (12). Embora o Senhor fosse morrer em uma cruz, ao invés de se sentar em um trono, Ele ainda era o Rei. Maria, por ouvir com mais atenção (cf. Lc 10.39), havia provavelmente entendido a missão do Mestre de uma forma mais completa do que qualquer outra pessoa. Pelo seu amor e pela sua lealdade, em todo o mundo, também será referido o

que ela fez para memória sua (13). Milhões de cópias do Evangelho, em milhares de idiomas, contam essa história, onde quer que o evangelho tenha chegado. Como ela deu tudo de si, o nome de Maria se tornou imortal. William Barclay chama a unção de Jesus por Maria de “A Extravagância do Amor”.

Na história podemos ver que 1) Há ocasiões em que o bom senso falha, 6-9; 2) Há certas coisas que precisam ser feitas quando surge a oportunidade, caso contrário jamais poderão ser feitas, 10-12; 3) A fragrância de um ato de amor dura para sempre, 13.

3. A Traição de Judas (26.14-16)' A mente ambiciosa de Judas Iscariotes reagiu violentamente ao “desperdício” de

aproximadamente um ano de salário (cf. Mc 14.5; Mt 20.2). Judas também esperava que Jesus estabelecesse o seu reino em Jerusalém. Mas parecia que tudo o que o Mestre dizia estava relacionado à sua crucificação, e não à sua coroação. Parece evidente que Judas agiu impulsionado por um motivo duplo; a sua ganância e as suas ambições políticas frustradas. Alguns pensam que ele queria que Jesus se manifestasse abertamente como Rei, e que a sua traição seria capaz de forçar essa situação. Judas foi ter com os príncipes dos sacerdotes (14) - agora os principais inimigos

de Jesus - e perguntou o que lhe dariam se lhes entregasse o Mestre (15). Eles lhe pesaram trinta moedas de prata. Este uso de histemi como “colocar em uma balança”8 e assim “pesar” só é encontrado no Novo Testamento, embora ocorra no texto grego clássico e na Septuaginta. A quantia que eles pesaram foi de trinta moedas (ou peças) de prata, que eram siclos de prata. O valor total seria igual a 120 denários, ou aproximadamente 25 dólares. Este era o preço de um escravo (Ex 21.32), o que reforça as palavras de Jesus em 20.28 e a afirmação de Paulo em Filipenses 2.7-8.

4. A Última Páscoa (26.17-29) a)

Os Preparativos (26.17-19). Uma das últimas coisas que Jesus fez com os seus

discípulos antes da sua morte, foi comer a refeição da Páscoa com eles. Isto foi particularmente apropriado, uma vez que, dentro de poucas horas, Ele mesmo se ofereceria como o Cordeiro Pascal para fazer a expiação pelos pecados de todos os homens. No primeiro dia da Festa dos Pães Asmos (17) - nesse dia se sacrificava o cordeiro da Páscoa (veja Mc 14.12; Lc 22.7). De acordo com a Lei Mosaica, esta comemoração recebia o nome de Páscoa, e era seguida pelos sete dias da Festa dos Pães Asmos (Lv 23.5-6). Mas naquela época todo esse período era conhecido por esse nome. Josefo diz: “Nós temos um banquete que dura oito dias, que é chamado de festa dos pães asmos”.9 Os três Evangelhos Sinóticos concordam em retratar Jesus como comendo a refeição

da Páscoa com os seus discípulos na noite anterior à Sua crucificação. Mas alguns pensam que o Evangelho de João não parece estar de acordo com isso. João diz que os judeus não entraram na audiência de Pilatos na manhã da crucificação “para não se contaminarem e poderem comer a Páscoa” (Jo 18.28).

O problema de harmonizar os relatos sinóticos e o de João, quanto a este aspecto, é

o mais difícil na cronologia do Novo Testamento. A maioria dos estudiosos hoje em dia considera que eles são irreconciliáveis, e escolhem a cronologia de João como sendo a correta, e a dos sinóticos como não sendo tão precisa. Alguns procuram uma posição de equilíbrio dizendo que não foi realmente a refeição da Páscoa que Jesus comeu com os seus discípulos - os Evangelhos Sinóticos afirmam categoricamente que foi - ou então que Ele intencionalmente comeu mais cedo, sabendo que estaria morto na hora normal da refeição.10 Edersheim insiste que a última Ceia dos Evangelhos Sinóticos era verdadeiramente a Páscoa.11 A mesma coisa diz J. Jeremias, que chama a atenção para o fato de que a ceia aconteceu em Jerusalém, durante a noite, com os Doze, com pão e vinho, e com um hino.12 Ele parece ter provado conclusivamente este ponto. Parece não haver como evitar o fato de que Jesus comeu a refeição de Páscoa com os seus discípulos antes da sua morte. Qual é a solução para este problema? Andrews afirma que João usou o termo “Páscoa” no seu sentido mais amplo. Ele escreve: "... a frase ‘comer a Páscoa’ naturalmente vem a significar todo o banquete”.13 Ele ainda diz: “A Páscoa, no texto de João, é uma palavra que se refere a toda a festa; e uma vez que já tinham celebrado a refeição pascal, ele não poderia empregar essa palavra para designar as refeições restantes?”.14 Stauffer tem outra explicação. Ele esclarece o fato surpreendente de que não é mencionado nenhum cordeiro ao dizer que um apóstata não tinha permissão de comer o cordeiro da Páscoa. Assim, sem o cordeiro, “Jesus teve a sua Páscoa 24 horas antes da refeição oficial de Páscoa dos membros da comunidade do templo”.15 Duas outras soluções foram oferecidas põr autores recentes. Uma delas é a seguinte:

“Naquele ano particular os judeus da Palestina observaram a Páscoa no sábado; os da Dispersão a observaram na sexta-feira”.18 Marcos seguiu o calendário da Dispersão. Assim, tanto os Sinóticos quanto João estão certos. (“Sexta-feira” significa o anoitecer da quinta-feira, uma vez que o dia judaico começa no pôr-do-sol). Freedman afirma que os Rolos do Mar Morto mostram que muitos judeus religiosos

seguiam o antigo calendário solar de Israel (364 dias) e rejeitavam o novo calendário lunar. Ele opina que Jesus comeu a refeição da Páscoa com os seus discípulos na noite de terça-feira, ao passo que os sacerdotes e os demais a comeram na sexta-feira, depois da crucificação.17 Ele considera que Jesus foi mantido prisioneiro desde a noite de terçafeira até a sexta-feira. Com tantas soluções propostas para escolher, é óbvio que não precisamos concluir

que existe uma contradição irreconciliável entre João e os Sinóticos. Enquanto nenhuma solução obtiver aceitação universal, a de Andrews talvez seja a que apresenta menos dificuldades e mais evidências a seu favor. O costume de Mateus de omitir detalhes volta a se manifestar nesta narrativa. Ele

não diz quem foi enviado para preparar a Páscoa. Marcos diz que foram “dois discípulos” e Lucas diz que foram “Pedro e João”. Mateus diz que eles foram ao encontro de um certo homem (18), ao passo que Marcos e Lucas falam de “um homem que leva um cântaro de água”. Os discípulos deveriam levar a mensagem: Em tua casa celebrarei a Páscoa

com os meus discípulos. Seguindo as instruções, eles prepararam a Páscoa (19).

b) A Última Ceia (26.20-25). Jesus assentou-se (ou “reclinou-se”) à mesa com os

doze apóstolos (20). Enquanto estavam comendo, Ele anunciou que um deles iria traí-lo (21). Os discípulos, chocados e entristecidos, perguntaram, um por um: Porventura,

sou eu, Senhor? (22). O texto grego indica que se esperava uma resposta negativa “Senhor, não sou eu, sou?!” O Mestre informou: O que mete comigo a mão no prato, esse me há de trair (23). Este fato torna o crime de Judas ainda mais hediondo. Pois comer com uma pessoa era um sinal de amizade e um compromisso de não lhe causar nenhum dano, de não lhe fazer nenhum mal. Até mesmo o traidor fez a pergunta, embora se dirigisse a Jesus como Mestre (em grego, “Rabi”) e não como Senhor. Cristo respondeu: Tu o disseste (25), o que parece ser uma resposta afirmativa direta. Apesar desse aviso de Jesus, e mesmo depois dessa oportunidade de reconsiderar a sua decisão, Judas prosseguiu com os seus planos de traição.

c) A Ceia do Senhor (26.26-29). Em uma conexão com a Ultima Ceia, Jesus instituiu

a Ceia do Senhor. Ele abençoou e partiu o pão, e disse aos seus discípulos: Tomai, comei, isto é o meu corpo (26). Deve ficar claro que o significado é “isto representa o meu corpo”. Então o Mestre tomou o cálice (27). Carr entende que este era o terceiro cálice da

refeição da Páscoa, chamado “o cálice da bênção”.18 Ele os instruiu: Bebei dele todos. É uma pena que essas palavras, repetidas milhares de vezes, todos os domingos, ao redor do mundo, tenham sido traduzidas de forma variada. O texto grego diz muito claramente: “Todos vocês bebam dele” (cf. RSV). Jesus então prosseguiu e identificou o conteúdo do cálice como representando o meu sangue, o sangue do Novo19 Testamento (“aliança”), que é derramado (grego, “despejado”) por muitos, para remissão dos pecados. Cristo declarou que Ele não beberia deste fruto da vide até àquele Dia em que o

beba de novo convosco no Reino de meu Pai (29). Existe um sentido em que Cristo compartilha com os fiéis o serviço da comunhão. Paulo afirma: “Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1 Co 11.26).

5. No Monte das Oliveiras (26.30-56) a) A Predição das Negações de Pedro (26.30-35). No final da Ceia, eles cantaram um

hino (30). Edersheim diz: “Provavelmente devemos entender que esse hino foi a segunda parte do Hallel [SI 115-118], entoado algum tempo depois do terceiro cálice, ou então o Salmo 136, que, no ritual atual, está próximo ao final do serviço”.20 Aos seus discípulos, o Mestre fez outro anúncio triste (cf. v. 21): Todos vós esta

noite vos escandalizareis em mim (31). Lenski apresenta: “Todos vocês serão perseguidos, como alguém que é surpreendido em uma armadilha, por estarem ligados a mim”.21 O verbo é skandalizo. E certo que todos os discípulos caíram na armadilha de Satanás naquela noite, quando abandonaram o seu Mestre. Cristo citou Zacarias 13.7, mudando o imperativo (tanto na versão hebraica quanto na Septuaginta) para um tempo futuro; o Senhor acrescentou: depois de eu ressuscitar, irei adiante de vós (32) para a Galiléia. O último verbo significa literalmente “mostrar o caminho”, e traz em si a imagem do pastor (31).

Pedro sempre tinha uma palavra a dizer. Como de costume, era uma palavra de

autoconfiança. Mesmo que todos os demais “abandonassem” a Jesus (RSV, NEB, NTLH), ele nunca o faria (33). Infelizmente, Pedro não conhecia a sua própria fraqueza. Cristo se sentiu obrigado a avisá-lo de que naquela mesma noite, antes que o galo cantasse, Pedro negaria três vezes o seu Mestre (34). Seguindo o seu comportamento característico, Pedro respondeu que morreria antes de negar o seu Senhor (35). Teria sido mais sábio pedir humildemente que o Senhor o fortalecesse para enfrentar a prova. Todos os discípulos o acompanharam, afirmando a lealdade deles.

b) A Oração no Getsêmani (26.36-46). O nome Getsêmani (somente aqui e em Marcos 14.32) significa “prensa de óleo”. O m onte das Oliveiras era naturalmente um lugar apropriado para extrair o azeite de oliva que era usado naquela época como combustível para lâmpadas, alimento e ungüento curativo. Jesus deixou oito dos seus onze discípulos na entrada do jardim. Levando somente o

seu círculo mais íntimo - Pedro e os dois filhos de Zebedeu (37) - Ele caminhou para o interior do bosque de oliveiras e abriu o seu coração para esses companheiros mais próximos. Ele disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte (38). Era o peso dos pecados do mundo sobre os seus ombros que o estava esmagando. Ele implorou: Ficai aqui e vigiai comigo. Mas eles fracassaram. Jesus foi um pouco adiante (39), não apenas fisicamente, mas espiritualmente. Se

Ele não tivesse ido um pouco adiante, poderíamos não ser salvos. E a menos que nós também caminhemos um pouco adiante - em serviço misericordioso e consagrado muitos outros não serão salvos. O Mestre prostrou-se sobre o seu rosto. Isto revela alguma coisa sobre a agonia

da sua alma. Ele orou pedindo que, se fosse possível, o cálice passasse dele. O que era este cálice? Certamente, era mais do que a morte física. Jesus não era covarde. Parece que os resíduos mais amargos deste cálice de dor seriam a separação do rosto do Seu Pai, quando Aquele que não conheceu o pecado se tornaria “pecado” (ou “uma oferta pelos pecados”) por nós (2 Co 5.21). A sua oração final foi: todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres. Esta sempre é a oração de uma alma consagrada. Quando Jesus retornou aos três discípulos, que deveriam estar vigiando (38), Ele os

encontrou adormecidos (40). Como Pedro havia se vangloriado de forma tão elevada, o Mestre o repreendeu. Então, nem uma hora pudeste vigiar comigo? E Cristo lhes deu outra advertência solene: Vigiai e orai, para que não entreis em tentação (41). Esta é uma advertência à qual todo cristão precisa dar atenção, durante todas as horas de todos os dias. “A eterna vigilância é o preço da liberdade.” Isto é verdade no campo militar, e é verdade espiritualmente. Jesus reconheceu que o espírito está pronto, mas a carne é fraca. Isto não significa a natureza carnal, mas o corpo físico. Os discípulos estavam tão cansados e tão entristecidos que adormeceram. Indo segunda vez, Jesus orou basicamente a mesma oração, com talvez uma ênfase

um pouco maior em faça-se a tua vontade (42). Mais uma vez Ele encontrou os discípulos dormindo, porque os seus olhos estavam carregados (43). Eles haviam terminado uma semana dura. As intenções deles eram boas, mas o desempenho deixava algo a desejar. Pela terceira vez o Mestre orou, dizendo as mesmas palavras (44). Quando Ele

retornou desta vez, disse: Dormi, agora, e repousai (45). Esta aparente exortação parece inconsistente com o versículo 46: Levantai-vos, partamos; eis que é chegado o que me trai. A solução do problema é simples. O texto grego do versículo 45 pode, com igual exatidão, ser traduzido como uma ordem ou como uma pergunta - a forma para ambas é exatamente a mesma. Mas aqui a ordem não se encaixa, enquanto a pergunta se encaixa perfeitamente. A melhor tradução, em nossa opinião, é: “Vocês ainda estão dormindo e repousando?” Em uma ocasião como esta, em que o Filho do Homem está “sendo traído” - a ação já está ocorrendo - vocês estão dormindo como sentinelas no seu posto?

c) A Traição e a Prisão (26.47-56). Enquanto o Mestre estava tentando despertar os

seus discípulos, Judas, um dos doze - que observação patética, encontrada nos três Evangelhos Sinóticos! - apareceu. Com ele estava uma grande multidão (47). Stauffer pensa que era “um pequeno exército de mil soldados”.22 Mas isso não parece provável em vista da missão de prender um Homem - ou até mesmo quase uma dúzia de homens. Era uma multidão heterogênea com espadas e porretes. Com certeza eles tinham falsas idéias sobre o Príncipe da Paz. Estes homens tinham sido enviados pelos príncipes dos sacerdotes e dos anciãos do povo, isto é, pelo Sinédrio. Judas lhes havia fornecido um sinal (48). Ele identificaria Cristo com um beijo.

Este é um ato particularmente atroz, uma vez que o beijo era um símbolo da amizade e da honra. Ele se aproximou de Jesus e o saudou afetuosamente com um beijo e as palavras: Eu te saúdo, Rabi (49; em grego, “mestre”). Com gentil compaixão o Mestre disse: Amigo (literalmente “companheiro” ou “camarada”), a que vieste? (50). Mas não havia mais tempo para conversas. A multidão rapidamente rodeou Jesus e o prendeu. Um dos discípulos de Jesus - João 18.10 nos diz que foi Pedro - puxou a sua espada

e tentou defender o seu Mestre. Ele agitou a espada, provavelmente com a intenção de cortar a cabeça do homem que ousou colocar as suas mãos em Cristo. O homem talvez tivesse tentado esquivar-se do golpe e assim perdeu uma orelha, em lugar de perder a cabeça. João também nos diz que o nome do servo do sumo sacerdote era Malco. E provável que tivesse essa informação por ele ser conhecido do sumo sacerdote (cf. 18.15). Jesus ordenou ao seu zeloso discípulo que guardasse a sua espada, pronunciando a

significativa verdade: todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão (52). Ele também declarou que poderia convocar mais de doze legiões de anjos (53). Não lhe faltava defesa. Mas Ele precisava se submeter, para que a vontade de Deus, revelada nas Escrituras (o nosso Antigo Testamento) fosse cumprida (54). A seguir, Cristo repreendeu a multidão (55) por sair como para um salteador (55;

grego, “ladrão”) com espadas e porretes (“pedaços de pau”). O Senhor lembrou aqueles homens de que haviam tido todas as oportunidades de prendê-lo quando Ele ensinava diariamente no Templo. Mas o que estava acontecendo era o cumprimento das Escrituras dos profetas (56). Uma triste observação figura como um apêndice: Então, todos os discípulos, deixando-o, fugiram. Onde estava a lealdade que com tanta firmeza havia sido afirmada poucas horas antes (cf. 35)?

6. O Julgamento Judaico (26.57—27.2) a)

Perante o Sinédrio (26.57-68). Amultidão que tinha aprisionado Jesus o levou até

Caifás, o sumo sacerdote, onde os escribas e os anciãos (o Sinédrio) estavam reunidos (57). Pedro, embora repreendido pelos seus esforços para proteger o Mestre, seguiu-o de longe (58). Ele deve, pelo menos, receber o crédito por tê-lo seguido. O seu amor pelo Senhor fez com que ele fosse até lá, embora tivesse medo. O apóstolo entrou no pátio do sumo sacerdote (em grego, “corte”) e assentou-se entre os criados, para ver o fim (58). Ele provavelmente percebeu, a esta altura dos acontecimentos, um pouco da gravidade da situação. Todo o conselho - composto dos príncipes dos sacerdotes, dos anciãos e dos escribas

- procurava falso testemunho contra Jesus, para poderem dar-lhe a morte (59). Esses líderes estavam tão determinados a matá-lo, que se curvariam a qualquer falsidade que pudesse levá-lo à morte. Mas todos os esforços falharam, pois as falsas testemunhas não conseguiam chegar a um acordo em suas histórias fabricadas (60). Finalmente, duas fizeram a mesma acusação. Elas acusaram Jesus de ter dito: Eu

posso derribar o templo de Deus e reedificá-lo em três dias (61). E evidente que Jesus nunca disse nada parecido com isso. Esta foi provavelmente uma interpretação errada de sua frase registrada em João 2.19. O sumo sacerdote desafiou Cristo a responder às acusações levantadas contra Ele

(62). Mas o Mestre permanecia em silêncio. Finalmente, o sumo sacerdote interrogou Jesus, sob juramento, solicitando que o Senhor falasse sobre os fatos relativos à sua origem (63). Diante de tamanha insistência, Jesus respondeu: Tu o disseste (64). A mesma expressão aparece no versículo 25. Carr escreve: “Esta é uma fórmula de concordância tanto no hebraico quanto no grego, e ainda é usada na Palestina com esse sentido”.23 Jesus então acrescentou uma afirmação altamente apocalíptica sobre o Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso - um substituto tipicamente judaico para “Deus” - e vindo sobre as nuvens do céu. Este é o tipo de atitude que se esperava do Messias. O efeito das palavras de Jesus foi eletrizante. Caifás rasgou as suas vestes (65).

Sob circunstâncias normais, a lei proibia o sumo sacerdote de tomar uma atitude como esta (Lv 10.6; 21.10), “mas o costume que o obrigava a isso ao ouvir uma blasfêmia, pode ter se desenvolvido a partir do século I”.24 Não havia mais a necessidade de testemunhas: Eis que bem ouvistes, agora, a

sua blasfêmia. Não teria sido blasfêmia afirmar ser um messias humano; aliás, muitos estavam esperando esta atitude. Mas o sumo sacerdote colocou Jesus sob juramento para dizer se Ele era “O Filho de Deus” (63). O Senhor respondeu afirmativamente. Este fato, juntamente com o restante do versículo 64, mostra porque o Sinédrio o considerou culpado de blasfêmia. Quando indagado, o grupo de líderes respondeu: E réu de morte (66). Os atos que

se seguiram são um triste comentário sobre o nível ético do judaísmo daqueles dias. O fato de os líderes religiosos da nação terem se curvado a atos tão infames, como cuspir no Seu rosto, esmurrá-lo e esbofeteá-lo (67), mostra a decadência do judaísmo. O versículo 68 fica claro à luz de Lucas 22.64, onde se afirma que eles vendaram

Jesus, e lhe disseram para identificar quem o havia esbofeteado. b)

Pedro Nega Jesus (26.69-75). Enquanto acontecia o julgamento perante Caifás,

Pedro estava assentado fora, no pátio (69) - como no original grego. Uma criada aproximou-se dele com a acusação: Tu também estavas com Jesus, o galileu. Pedro negou, afirmando: Não sei o que dizes (70). A seguir, para evitar a sua identificação junto à brilhante luz do fogo (cf. Mc 14.54), ele se esgueirou para o vestíbulo, ou “entrada” (71). Mas ali, outra criada o viu e disse aos que estavam à sua volta: Este também estava com Jesus, o Nazareno. Ele negou outra vez, agora com juramento: Não conheço tal homem (72). Aqui, Pedro foi culpado de perjúrio. Depois de pouco tempo, os que ali estavam se aproximaram dele com a afirmação:

Verdadeiramente, também tu és deles, pois a tua fala te denuncia (73). Uma possível tradução seria: “O teu sotaque te denuncia”. Os galileus falavam com um sotaque diferente dos judeus da Judéia. Era fácil para o povo de Jerusalém reconhecer um galileu ao ouvi-lo falar. Quando Pedro se viu realmente encurralado, ele começou a praguejar e a jurar,

dizendo: Não conheço esse homem (74). Isso poderia facilmente ser interpretado como significando que ele usou uma linguagem profana. Mas o que isso realmente significa é que ele chamou sobre si as maldições de Deus, caso não estivesse dizendo a verdade, e fez um juramento de que estava. Assim ele foi culpado de duplo perjúrio (cf. 72). Exatamente nesse instante o galo cantou. Pedro se lembrou das palavras de Cristo sobre o que ele tinha acabado de fazer (75). E, saindo dali, chorou amargamente. Essas eram lágrimas de genuíno arrependimento, como se mostrará a seguir. Quando Pedro afirmou categoricamente que nunca iria negar o seu Senhor, ele foi

sincero. Mas ele não conhecia o grau de corrupção do seu próprio coração, que lhe foi revelado por esta experiência de negar a Cristo. Com isso, então, ele ficou preparado para esperar, com os demais, pelo derramamento do Espírito Santo no Pentecostes, que purificaria o seu coração e o faria completamente leal ao seu Senhor.

c) A Sessão Matinal do Sinédrio (27.1-2). As reuniões do Sinédrio à noite eram ilegais. Assim, o grupo se reuniu durante o dia para dar a sentença oficial a Jesus. O governo romano não permitia que os judeus executassem ninguém - exceto no caso de um estrangeiro que invadisse os recintos sagrados do Templo, isto é, que passasse além do Pátio dos Gentios. Tudo o que o Sinédrio podia fazer era prender Jesus e entregá-lo a Pilatos para o julgamento final. Pôncio Pilatos era o governador (2; hegemon), ou “procurador” da Judéia entre 26 e 36 d.C.

7. O Remorso de Judas (27.3-10) Embora os três Evangelhos Sinóticos falem do pacto que Judas Iscariotes fez com os

príncipes dos sacerdotes para trair Jesus, e os três registrem a traição, somente Mateus narra o remorso e o suicídio do traidor. O caso de Judas nos faz pensar com seriedade; como um homem a quem Cristo escolheu para ser apóstolo e enviou a pregar, pôde terminar a sua carreira dessa maneira. Quando Judas viu que Jesus fora condenado pelo Sinédrio - e este veredicto era

irrevogável26 - ele ficou arrependido (3). O verbo não é metanoeo, “mudar de idéia”, mas sim metamelomai, “lamentar”. Ele lamentou as conseqüências do seu ato de traição, mas não teve um genuíno arrependimento do seu pecado. Voltando à presença dos príncipes dos sacerdotes e dos anciãos (o Sinédrio), ele levou as trinta moedas de prata. O dinheiro queimava nas suas mãos. Aos líderes religiosos ele fez esta confissão: Pequei, traindo sangue inocente (4).

Mas ele não recebeu conforto nem ajuda por parte deles, que, como resposta, somente lhe disseram: Que nos importa? Isso é contigo. Se os líderes espirituais falavam dessa maneira ao seu povo, fica bastante claro que as coisas estavam muito mal com o judaísmo. Judas não conseguia mais suportar a visão do seu ganho ilícito. Literalmente, “atirando no santuário as moedas de prata” - a parte interior do templo, onde somente os sacerdotes podiam entrar - ele retirou-se e foi-se enforcar (5). Os príncipes dos sacerdotes apanharam as moedas de prata, mas ficaram confusos quanto ao que fazer com elas. Eles não poderiam usá-las no Templo, porque eram preço de sangue (6). Eles se reuniram em conselho e decidiram comprar com elas o campo de um oleiro (7). O texto grego é “o campo do oleiro”, o que dá a entender que era um lugar bem conhecido nas proximidades de Jerusalém. Os estrangeiros que eles queriam sepultar ali seriam os judeus estrangeiros que morriam durante as festividades anuais, ou que vinham, já em idade avançada, para morrer na Terra Santa.26 De acordo com os seus hábitos, Mateus cita uma profecia do Antigo Testamento (910). A citação é atribuída a Jeremias. (Na leitura das Escrituras em voz alta, os nomes proeminentes do Antigo Testamento mencionados no Novo Testamento devem sempre receber a forma familiar que eles têm nas Escrituras antigas.) Mas a passagem parece ser uma citação de Zacarias 11.12-13. Bengel julga que Jeremias é um comentário, adicionado por um copista.27 John Wesley — que se baseou fortemente na obra Gnomon, de Bengel —, em seu Explanatory Notes on theNew Testament escreve: “Apalavra Jeremias, que foi adicionada ao texto em cópias posteriores, e por isso foi acolhida em muitas traduções, é evidentemente um engano; pois aquele que falou o que Mateus registra, ou melhor, parafraseia, não foi Jeremias, mas sim Zacarias”.28 Da mesma maneira, Adam Clarke diz: “E muito provável que a leitura original fosse dia touprophetou [‘por meio do profeta’], e que não fosse mencionado o nome de nenhum profeta”.29 O problema textual é que “Jeremias” é o que está escrito em praticamente todos os

manuscritos gregos, incluindo o mais antigo, que ainda existe. O comentarista Morison, que segue o pensamento de Wesley, entende que se trata de um erro tipográfico que de alguma maneira teria sido introduzido na “edição original dos Evangelhos, a primeira edição publicada”, assim como a expressão “pressionar um mosquito” ao invés de “coar um mosquito” teria sido introduzida na primeira edição da versão King James em inglês, e assim permanecido (cf. 23.24).30

8. O Julgamento Romano (27.11-31) a)

Jesus Perante Pilatos (27.11-14). Tendo sido condenado pelos judeus em um exemplo de julgamento corrupto, Cristo agora compareceu perante o governador (11). Os três Evangelhos Sinóticos dizem que Pilatos perguntou: És tu o Rei dos judeus? e os três dão a Sua resposta: Tu o dizes. M’Neile diz que isto parece implicar: “Você está verbalmente correto, mas a verdade está além da sua compreensão”.31 Sendo acusado pelos líderes judeus, Jesus nada respondeu (12). “O silêncio, que

respondeu às acusações e à próxima pergunta de Pilatos, é do mesmo tipo de 26.62ss.; legalmente ele poderia ser interpretado como uma confissão de culpa, mas, na verdade, produzia um efeito desconfortável sobre o juiz: Caifás foi levado por ele a extorquir uma confissão, e Pilatos a uma série de tentativas para libertar o prisioneiro e a si mesmo.”32 Pilatos estava muito maravilhado com o perfeito equilíbrio de Cristo (14).

b) Jesus ou Barrabás ? (27.15-23). Durante a festa anual (15) da Páscoa, o governador

tinha o costume de soltar um preso escolhido pelo povo. Muitas vezes já se chamou a atenção para o fato de que este costume não é mencionado fora dos Evangelhos. Carr faz uma boa sugestão sobre como ele surgiu entre os judeus. Depois de notar que a libertação dos prisioneiros ocorria em algumas festas em Roma, ele diz: “Portanto, não é improvável que Herodes, o Grande, que certamente familiarizou os judeus com outros costumes da Grécia e de Roma, introduzisse esse hábito, e que o governador romano, ao ver que o costume estava estabelecido e que agradava aos judeus, de acordo com os procedimentos romanos... o tivesse mantido”.33 E significativo que Pilatos diga: “Vós tendes por costume” (Jo 18.39). Havia outro preso bem conhecido ali, chamado Barrabás (16). Este é um nome

aramaico que significa “filho [bar] de um pai \abbaf', Marcos (15.7) e Lucas (23.19) afirmam que Barrabás havia cometido o crime de assassinato durante um motim. Pilatos agora perguntou aos líderes judeus (17) se eles queriam que ele libertasse Barrabás ou Jesus, o Messias (Cristo). E óbvio que o governador esperava que eles preferissem o profeta inofensivo no seu meio ao perigoso assassino. Ele sabia que o ódio que eles sentiam por Jesus era devido à inveja (18). Isto deveria tê-lo obrigado a libertar a Cristo. Adicionalmente, houve uma mensagem de sua esposa (registrada somente no texto de Mateus) insistindo com ele: “Não entres na questão desse justo”. Lenski faz o seguinte comentário: “No sonho dela, Jesus apareceu completamente inculpável, e o sonho provavelmente sugeriu que Pilatos estava prestes a condenar este homem justo”.34 Foi por isso que ela disse num sonho muito sofri por causa dele (19). Enquanto Pilatos estava ocupado com a mensagem de sua esposa, os príncipes

dos sacerdotes e os anciãos aproveitaram a oportunidade para incitar a multidão a pedir que Barrabás fosse solto, e que Jesus fosse morto (20). Assim, quando Pilatos retomou o julgamento onde havia parado, perguntando quem deveria libertar, o povo respondeu Barrabás (21). Então Pilatos fez uma pergunta que assumiu proporções cósmicas em seu impulso evangelístico: Que farei, então, de Jesus, chamado Cristo? (22) Podemos recordar as palavras da canção: “O que você fará com Jesus? Neutro você não pode ficar”. Nenhum ser humano pode permanecer neutro em relação a Jesus Cristo. Esta passagem sugere três pontos. Pilatos: 1) foi confrontado por Cristo, 11; 2) ficou

preocupado com Cristo, 17; 3) foi condenado por Cristo, 23. O texto principal está no versículo 22. Como resposta à pergunta do governador, o povo gritou: Seja crucificado! Em seu

poderoso romance, Behold the Man, Kagawa talvez tenha percebido bem o que estava acontecendo aqui. Ele retrata o ardiloso e idoso Anás, ex-sumo sacerdote (cf. Jo 18.13) agindo em desespero. “De um modo secreto, ele estava infiltrando os seus servos na multidão, através dos sacos de moedas que estavam distribuindo, sussurrando para os que estavam ali o que deveriam fazer.”35 O que eles estavam dizendo à multidão, naturalmente, era que deveriam pedir a libertação de Barrabás e a crucificação de Jesus.

c) Jesus é Açoitado (27.24-26). Pilatos finalmente cedeu aos pedidos da multidão.

Ele podia ver que a multidão estava ficando descontrolada, que um tumulto (levante) estava surgindo. Não havia nada que um governador romano temesse mais do que um tumulto. Se Roma ficasse sabendo que ele tinha permitido que acontecesse uma revolta, a sua carreira pública estaria encerrada. Era melhor deixar que um prisioneiro sofresse um erro da justiça do que arriscar o seu próprio futuro. Assim, Pilatos, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo; considerai isso (24). De forma insana, a multidão respondeu: O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos (25). O horrível holocausto do ano 70 d.C. acrescenta uma trágica nota de rodapé a este epitáfio de uma nação. Pilatos soltou Barrabás, mandou açoitar Jesus e entregou-o para ser crucificado (26). O açoite romano era um instrumento cruel - um chicote pequeno com longas tiras que tinham peças agudas de metal ou ossos presos nas extremidades. O prisioneiro era forçado a se curvar, e o açoite caía com uma força terrível sobre as suas costas despidas. A pele esticada em breve estaria retalhada. Não era incomum que os homens morressem sob esse açoite. Parece ter sido um costume romano o de açoitar as vítimas antes da crucificação. Josefo menciona pelo menos dois casos como este.36

d) Jesus é Escarnecido (27.27-31). Os soldados do governador levaram Jesus à audiência - uma única palavra,praitorion, do latimpraetorium. Essa palavra primeiramente se aplicava ao quartel-general em um acampamento militar romano, e posteriormente à residência oficial do governador de uma província. A localização do Pretório em Jerusalém é uma questão discutida. Alguns estudiosos julgam que era o palácio de Herodes, na parte sudoeste da cidade, perto da atual Porta Jaffa. Outros preferem a Torre de Antônia, o quartel romano na extremidade noroeste da área do Templo. Josefo parece favorável à última: ele menciona o governador estabelecendo o seu tribunal “no palácio”.37 Schurer diz: “Em ocasiões especiais, particularmente durante as principais festas judaicas, quando, devido às multidões que se espremiam em Jerusalém, uma vigilância particularmente cautelosa era necessária, o procurador ia a Jerusalém, saindo de Cesaréia, a sede do governo romano na Palestina, e residia ali, no lugar que havia sido o palácio de Herodes”38. Este ponto de vista tem o apoio de M’Neile,39 de George Adam Smith,40 de Sherman Johnson,41 e talvez da maioria dos estudiosos da atualidade. Os soldados reuniram toda a coorte. Normalmente isso consistia de uma décima

parte de uma legião, aproximadamente seiscentos homens. Mas nem todos poderiam estar em serviço ao mesmo tempo. Esses soldados despiram Jesus e o cobriram com uma capa escarlate (28) - a capa exterior de um soldado romano. A seguir, eles teceram uma coroa de espinhos, que colocaram na sua cabeça, e na sua mão direita puseram uma cana (como se fosse um cetro). Fazendo reverências diante dele, o escarneciam, dizendo: Salve, Rei dos judeus (29). Cuspindo nele com desprezo, tiraram-lhe a cana e batiam-lhe com ela na cabeça (30). Nunca alguém foi tratado com desdém mais cruel e mais imerecido. Depois que os soldados tinham zombado de Jesus até se cansarem do seu jogo cruel, tiraram-lhe a capa e o levaram para ser crucificado (31).

B. A M orte e o Sepultamento, 27.32-66 1 .A Crucificação (27.32-50) a)

As Horas da Manhã (27.32-44). Quando os soldados deixaram o Pretório, eles

obrigaram um homem cireneu (32) - do norte da África - a levar a cruz de Jesus. Jesus começou a caminhar levando a sua cruz, mas enfraquecido por tudo o que havia passado, Ele foi incapaz de carregá-la por muito tempo. Assim, os soldados forçaram uma pessoa que passava e colocaram a cruz sobre os seus ombros. A palavra Gólgota (33) é uma transliteração da palavra aramaica que significa

caveira. Ela é encontrada em Mateus, Marcos e João, mas não em Lucas. Os quatro Evangelhos têm a palavra grega kranion, que chegou aos idiomas inglês e português em sua forma latina, cranium. Em algumas versões é traduzida como “Calvário” em Lucas (23.33). Ela vem da Vulgata Latina, onde calvaria é a tradução normal para a palavra grega kranion (encontrada somente aqui e nas três passagens correspondentes nos outros Evangelhos - Mc 15.22; Lc 23.33; Jo 19.17). Apesar disso, a palavra “calvário” se tornou muito enraizada no nosso pensamento teológico e tem um lugar importante na nossa homilética e nos nossos hinos. A localização do Gólgota é um assunto incerto e muito discutido. No entanto, de

forma geral, hoje em dia os estudiosos estão de acordo em que não significa um “lugar de caveiras” - isto é, de execuções - mas sim um monte em forma de caveira. Os dois lugares propostos são a Igreja do Santo Sepulcro, dentro da Velha Jerusalém, e “o calvário de Gordon”, do lado de fora da muralha norte da cidade, perto da Porta de Damasco. Embora os arqueólogos prefiram o primeiro lugar, o último fornece mais o “sentimento” da crucificação - e o Jardim do Sepulcro quase fornece o “sentimento” da ressurreição. Tendo chegado ao lugar da execução, os soldados ofereceram a Jesus vinho misturado com fel para beber (34). A tradição diz que as mulheres de Jerusalém tinham o costume de oferecer esse narcótico anestesiante, movidas pela piedade aos prisioneiros que seriam crucificados. Mas quando Jesus o provou, ele não quis beber. Ele não queria que os seus sentidos se amortecessem, nem que a sua consciência diminuísse enquanto sofria pelos nossos pecados. Finalmente, eles o crucificaram (35). As suas roupas foram repartidas entre os

quatro soldados. O lançando sortes é explicado por João (19.23-24) como um ato específico em relação à túnica, que não tinha costura (chiton). Mateus novamente usa a sua fórmula favorita: para que se cumprisse o que foi dito. Desta vez, a citação pertence ao Salmo 22.18, o grande salmo messiânico da crucificação. O versículo 36 é algumas vezes interpretado como uma evidência adicional da insensível crueldade dos soldados. Mas M’Neile provavelmente está mais próximo da verdade, quando escreve: “Isto não significa que eles estivessem tripudiando sobre o Sofredor; eles se sentaram e o vigiaram, como era costume, para evitar a possibilidade de uma fuga”.42 Sobre a cabeça de Jesus havia uma tábua que exibia a sua acusação (“crime”; 37).

As palavras exatas são um pouco diferentes nos quatro Evangelhos. Marcos apresenta a forma mais curta: “O Rei dos Judeus”, que é incorporada pelas outras três. Colocando-as todas juntas, obtemos: “Este é Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus”. Com Jesus estavam sendo crucificados dois salteadores (em grego, “ladrões”), um,

à direita, e outro, à esquerda (38). E perfeitamente possível que eles fossem amotinados, como Barrabás. Se este foi o caso, é possível que Barrabás tivesse sido designado para morrer na cruz que estava no centro. Mas Jesus tomou o seu lugar - uma parábola acerca do fato de que Ele tomou o lugar de cada pecador na cruz. Até mesmo os que passavam por ali zombavam de Jesus de uma maneira impiedosa.

Eles recordavam a acusação de que Ele tinha afirmado ter o poder para destruir e construir o Templo. Se Ele era o Filho de Deus (40), por que não afirmava o seu divino poder e não descia da cruz? Os príncipes dos sacerdotes, com os escribas, e anciãos (que formavam o Sinédrio) também zombavam dele. Involuntariamente, proferiram uma verdade profunda: Salvou os outros e a si mesmo não pode salvar-se (42). Era exatamente isso. Se Ele tivesse salvado a sua própria vida, nós ainda estaríamos mortos no pecado. A crueldade desses homens pode ser vista em sua insinuação de que Deus Pai não queria Jesus (43). Naturalmente, a verdade é que o Pai tinha que voltar as costas para o seu Filho e deixar que Ele morresse sozinho. Isso era parte do preço da nossa redenção. Até mesmo os “ladrões” dos dois lados lhe lançaram também em rosto as mesmas palavras (44) - somente duas palavras em grego: “o censuraram”.43

b) As Horas da Tarde (27.45-50). Os três Evangelhos Sinóticos mencionam a mudança que ocorreu na hora sexta (ao meio-dia), quando houve escuridão até a hora nona (45) - três horas da tarde. Isto aconteceu sobre toda a terra. A palavra grega é ge, que pode ser traduzida como “terra” ou “região”. Se a segunda hipótese for a correta, ela pode se referir a toda a Palestina ou somente à Judéia. Provavelmente, a última interpretação é a melhor. Uma vez que a lua sempre é cheia na época da Páscoa, o que acontece no meio do mês lunar entre as luas novas, isto não poderia ter sido um eclipse do sol. Tratava-se de uma escuridão sobrenatural ou devida a nuvens muito pesadas e escuras. De qualquer forma, o acontecimento foi um milagre. Aproximadamente na hora nona - a hora da oferta dos sacrifícios do entardecer Jesus exclamou em alta voz: Eli, Eli, lemá sabactâni? - palavras aramaicas que significam: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? (46). De que maneira Jesus tinha sido abandonado? M’Neile diz: “O grito foi uma expressão da sua agonia de corpo e alma, mas naquela agonia está envolvido o mistério da expiação”.44 Alguns dos presentes pensaram que Jesus estivesse chamando o profeta Elias. Um

deles ensopou uma esponja em vinagre e ofereceu a Ele, para saciar a sua insuportável sede (48). Mas os restantes procuraram contê-lo. E melhor esperar e ver se Elias virá salvá-lo (49). Mais uma vez Jesus clamou em voz alta, e então entregou o espírito (50) - ou “despediu o seu espírito”. Jesus havia declarado que tinha poder para dar a sua vida e também para tornar a tomá-la (Jo 10.18).

2. Outros Acontecimentos (27.51-54) Quando Jesus morreu, o véu do templo se rasgou em duas partes, de alto a baixo

(51). Este era o véu interno, que separava o Santo dos Santos do Lugar Santo. O significado espiritual desse acontecimento se afirma claramente em Hebreus 9.1-14; 10.19-22. Através do véu da carne rasgada de Cristo, o caminho para a presença de Deus estava agora aberto. Isto também pode ter sido uma indicação de que em breve o antigo santuário seria destruído (70 d.C.) No cristianismo podemos adorar a Deus a qualquer hora e em qualquer lugar. Também pode ter havido uma conexão entre este evento e a conversão de muitos sacerdotes (At 6.7). O rasgar do véu está registrado nos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mc 15.38; Lc

23.45), mas o tremor de terra e a ressurreição de alguns santos só estão registrados aqui (51&-53). Se houve alguma relação entre o tremor de terra e o rasgar do véu, não se sabe; nada está afirmado aqui. Parecem ter sido duas específicas conseqüências sobrenaturais daquela morte que abalou a Terra. Tampouco sabemos o que aconteceu com os santos que ressuscitaram. Quaisquer sugestões a esse respeito seriam pura especulação. Quando o centurião (oficial encarregado de cem homens) viu as coisas que tinham

acontecido, ele se atemorizou e disse: Verdadeiramente, este era o Filho de Deus (54). Não há um artigo definido no texto grego aqui. Essa frase pode ser traduzida como “um filho de Deus” (RSV) ou talvez “Filho de Deus” (Berkeley). Mas uma coisa deve ser dita sobre a tradução “o Filho de Deus” aqui. E. C. Colwell discutiu longamente o uso ou a omissão do artigo definido no texto grego do Novo Testamento.45 Moule aparentemente concorda com ele.46 A omissão do artigo definido não é uma evidência contrária à divindade de Jesus, ensinada tão claramente por todo o Novo Testamento. A omissão aqui apenas sugere que era improvável que um soldado romano pagão pudesse ter conhecimento suficiente para entender e afirmar a divindade de Jesus. Na narrativa de Lucas, o centurião diz: “Na verdade, este homem era justo”.

3. As Mulheres Presentes (27.55-56) Em um agudo contraste com as atitudes e os atos vis dos líderes judeus ao redor da

cruz (41-43) estão as reações do centurião (54) e destas mulheres. Com amorosa devoção, elas tinham seguido o Mestre desde a Galiléia, para o servir (diakonousai; 55). Carr chama isso de “O início do ministério das mulheres - o diaconato feminino - na igreja cristã”.47 Os homens tinham fugido amedrontados (26.56). Foram as mulheres que ficaram diante da Cruz. Que consolo isto deve ter sido para Cristo! Maria Madalena (56) é mencionada aqui pela primeira vez neste Evangelho. O seu

nome indica que ela vinha de Magdala, na costa ocidental do mar da Galiléia. Jesus tinha expulsado sete demônios dela (Lc 8.2), e ela estava cheia de gratidão a Ele. A sua profunda devoção fez com que ela fosse a primeira a estar no seu sepulcro vazio na manhã da Páscoa, e a primeira a ver Jesus depois da sua ressurreição (Jo 20.1-18). Sabese muito pouco sobre a outra Maria.... a mãe dos filhos de Zebedeu provavelmente se chamava Salomé (cf. Mc 15.40).

4. O Sepultamento (27.57-61) Vinda já a tarde (57) - o final da tarde, antes do pôr-do-sol, quando começaria o

sábado sagrado - José de Arimatéia realizou o sepultamento do corpo de Jesus. Entre os judeus se considerava uma coisa horrível para o corpo de um amigo ou companheiro judeu permanecer sem ser sepultado. O Livro apócrifo de Tobias enfatiza fortemente este fato. José aqui é chamado de discípulo de Jesus. Esta parece ser a primeira vez em que

ele se apresenta abertamente a favor de Cristo. Foi preciso ter coragem para ir até Pilatos e pedir o corpo de Jesus. Mas José o fez, e o seu pedido foi atendido. Não havia tempo para qualquer tratamento demorado do corpo. Ele simplesmente

envolveu-o num fino e limpo lençol, e o pôs no seu sepulcro novo, que havia aberto em rocha (59-60). Ele rolou uma grande pedra para a porta do sepulcro e se foi. As duas Marias estavam vigiando atentamente o lugar onde o Senhor foi colocado (61).

5. A Colocação da Guarda (27.62-66) Embora os quatro Evangelhos registrem o sepultamento de Jesus, somente o de

Mateus fala da colocação da guarda. Isso aconteceu no dia seguinte (62), no sábado. Os príncipes dos sacerdotes (os saduceus) e os fariseus (representando o Sinédrio) vieram até Pilatos. Eles tinham ouvido falar da predição de Jesus, de que ressuscitaria no terceiro dia. Eles não queriam arriscar. Pediram que uma guarda fosse colocada diante do sepulcro, para que os discípulos não viessem e roubassem o corpo, e então afirmassem

que Ele tinha ressuscitado. A última frase do versículo 64 é assim explicada por M’Neile: “ ‘O último erro’ seria a crença na ressurreição de Jesus; o ‘primeiro’, a crença de que Ele era o Messias”.48 Pilatos respondeu: Tendes a guarda; ide, guardai-o como entenderdes (65). O

termo guarda aqui é koustodian (“custódia”). Talvez o verbo ter devesse ser tratado como um imperativo, ao invés de um indicativo (a mesma forma em grego, na segunda pessoa do plural). Lenski faz a seguinte tradução: “Usem a guarda!”.49 Provavelmente Pilatos estivesse irritado e tenha falado rispidamente. Estes homens o haviam encurralado e ele estava sem dúvida desgostoso pelos seus pedidos de favores adicionais. Mas ele evidentemente lhes deu um pequeno grupo de soldados para que montassem uma guarda oficial no sepulcro (66).


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